"Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé".É assim que o apóstolo Paulo prevê, com serenidade, o seu martírio, na passagem bíblica de II Timóteo 4:7. Na verdade ele fala da experiência de cada homem, ao utilizar como referência o povo de Israel, acostumado a trajetos, duras caminhadas, tribulações. Da história do homem, desde seu nascimento, todos combatemos as agruras em busca da sobrevivência, e continuaremos a combater, prosseguiremos na luta, até a nossa morte.
Sou um ser dotado de fúria. Fúria não no seu sentido negativo, diabólico, violento, conectado com o ódio ou a raiva. Muito pelo contrário, minha fúria vem da alegria, do ímpeto, da ânsia do combate, do prazer pela luta, da disposição em sempre encarar, em querer singrar novos horizontes, em destruir os obstáculos maldosamente deixados pelo tempo. Enquanto eu tiver fôlego, enquanto eu viver, até o momento em que o "cara lá de cima" me detenha e diga: "agora, descanse".
Vemos pessoas o tempo inteiro lutando, batalhando por vidas, combatendo a miséria, o desemprego, a fome. Vemos mulheres lutando para escapar da violência masculina, educando seus filhos, batalhando por dias melhores, assim como observamos os enfermos lutarem contra suas doenças, buscando até o último suspiro a cura para a dor que os acomete, vemos estudantes humildes que saem do analfabetismo em busca de sua redenção pela educação, ou artistas que passam fome por escolher viver da arte até que seu talento seja reconhecido, e vemos que a necessidade da batalha é algo premente, se queremos chegar a algum lugar.
Para Aristóteles os homens combatiam em busca de sua felicidade. Agostinho dirá que essa felicidade, no final das contas é Deus, e para conseguir isso o homem tem que lutar contra si próprio. Lutar contra suas imperfeições, seus erros, suas más avaliações. É nesse exercício contínuo de combater, que, por vezes, saboreio o prazer da vitória, o sabor delicioso da tão buscada e sonhada fruta, depois de subir galhos e mais galhos, com suas folhagens cerradas, cheias de espinhos, às vezes hesitante pelo medo da queda no rompimento de um galho, mas sempre subindo mais alto, para atingir aquela fruta saborosa no topo da árvore, porque queremos crescer!
Quando corro pelo parque da Redenção, em Porto Alegre, podem acreditar, medito. As batidas aceleradas do meu coração, o suor escorrendo pelo meu rosto, a respiração marcada, é acompanhada de pensamentos, reflexões, orações, conversas com um Deus que eu acredito, que me consola, aconselha, acompanha, dando um caráter sagrado a minha solidão. Nele encontro conforto, vislumbro sabedoria, e naqueles momentos (como em vários outros), dou-me a oportunidade de transcender. Pois é, podem achar que estou delirando, mas, pra mim, correr é transcendência. Santo Agostinho meditava caminhando de pés descalços pela praia do norte da África, eu, simplesmente corro. Se não correrei mais pela Redenção, correrei sempre em outros lugares (creio que a próxima pista de corrida será no Aterro do Flamengo).
Ao correr, e ao dialogar com meu pai espiritual, lembro-me também de meu pai aqui na terra, meu bom e saudoso Antonio William Alves. Ao ver as crianças correndo junto com seus pais, lembro-me quando corria com meu velho, ele então jovem, forte, vigoroso, e eu um moleque de 10 anos, correndo pela mata amazônica, no período em que vivia num conjunto residencial militar em Belém do Pará. As corridas remetem a um tempo de saudosismo, quando meu pai, com a idade que eu tenho hoje, deveria também meditar em seu trote entre as trilhas de corrida, carregando consigo em cada passada de pernas os seus pensamentos, as suas reflexões. É, meu velho! Pena que a idade hoje e as enfermidades não permitam que continuemos a correr juntos; mas ainda existem as caminhadas pela praia, e isso, ao seu lado, e com meu braço em volta de seu ombro, ainda iremos fazer!!!
A corrida faz parte do combate. Temos que correr para combater. Correr contra o tempo, principalmente, e nessa corrida, nesse combate, fico pensando nas oportunidades que passam e naquelas que podem vir a ser perdidas, e me pergunto: " e agora, meu Deus?". É justamente isso que passa pela minha cabeça agora, ao ter sido bem sucedido em mais um combate, ao ser aprovado em um recente concurso público para professor. A oportunidade está batendo a porta, os obstáculos imensos para se abrir a fechadura, resta saber se terei ânimo e estado de espírito suficiente para pagar o preço pela vitória.
Sim, as vitórias não vem de graça e cobram um preço, às vezes, para alguns, altíssimo, como o sacrifício e a perda de bens materiais. Tenho uma vida razoavelmente confortável, devido ao salário que recebo de outro cargo público, cuja função não mais me apraz. Entristece-me mesmo a possibilidade de continuar a ficar fazendo as mesmas velhas coisas; coisas que não fui, ou não sou mais talhado para fazer. É como se meu tempo já tivesse passado numa dada atividade, e eu sinta que não sou mais calibrado para exercer certas funções, participar de certos habitus, corresponder a um determinado status social. Enfim, as vitórias envolvem sacrifícios e para que não transforme as minhas em "vítórias de Pirro" tenho sempre que analisar o preço de meu sacrifício!
É por isso que luto e sei que a luta é árdua! Moisés não teve "melzinho na chupeta" quando quis libertar o povo hebreu da escravidão egípcia. Também me dá trabalho fugir da senzala, sou sujeito à provações. Mas ao mesmo tempo em que sei que posso cair na maldição dos faraós, também sei que posso ser ungido pelos anjos! Já escuto vozes dissonantes entre pessoas do meu meio ou que se encontram na minha própria cabeça querendo dizer para onde devo ir, o que devo fazer; mas sei que no fim das contas, no meu ajuste com "papai do céu", como dizia minha mãe quando eu era criança, as coisas devem e vão se ajustar.
É, creio que Deus gosta dos lutadores! Escuto Ele dizendo pela voz de Paulo Vanzolini: "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima". Pois é, Lázaro: "Levanta-te e anda!".Levanto e continuarei a levantar até onde Ele permitir. Vivi, vivo e continuarei vivendo essas sensações: o prazer da luta e a glória da vitória.
Aqui vai, minha transcrição literal do Salmo 23: "O Senhor é meu pastor e nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça, pelo amor ao seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam". Amém meeeeesmmooo!! Obrigado, Deus!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
quarta-feira, 31 de março de 2010
quarta-feira, 24 de março de 2010
SAÚDE PÚBLICA:"Ohh, Shitt!!!"-Por que tanta novela na reforma da saúde nos EUA e o que temos haver com isso?!
O presidente norte-americano Barack Obama conseguiu uma inesquecível vitória histórica na semana passada, quando, após mais de 50 anos de enrrolação, finalmente foi aprovado um plano nacional de saúde pública nos EUA. Uma espécie de "SUS yankee".
No bom documentário Sicko-S.O.S. Saúde, o cineasta Michel Moore já tinha demonstrado o caos do sistema de saúde norte-americano, demonstrando que, no final das contas, na lógica capitalista de mercado, quem não tem dinheiro pra pagar, não tem médico. Quem reclama aqui no Brasil de nossos hospitais públicos sempre lotados, faltando leitos e repletos de doentes, espalhados pelo corredor, ao ver o filme de Moore deve dar graças a Deus de pobre ainda ter acesso a isso; pois na Terra do Tio Sam, do american way of life, se o indivíduo estrebuchar muito, acaba saindo do hospital direto pra cadeia, por perturbar a law and order, ao querer um tratamento médico minimamente humano e decente.
A própria máe de Obama, Ann Durham, no seu combate contra o câncer, foi vítima desse sistema. A mulher passou anos, enquanto seu jovem filho mestiço Barack formava-se em direito( preparando-se para ser o líder mundial que agora é), questionando os preços extorsivos e abusivos dos seguros de plano de saúde nos EUA, acabando por perder a vida ao recorrer a um deles. A discussão passa pelo velha tema do fetichismo do mercado, da lógica capitalista em querer transformar tudo em mercadoria, por um velho racionalismo contratualista "a la Denis Rosenfield" , tão enraizado pelo pensamento jurídico positivista, e da manjada sacanagem de transformar a vida e a saúde humana em negócio. Sim, estou falando dos famigerados planos de saúde!!
Ainda sou servidor público(digo, ainda, porque estou doido pra cair fora, mais dia ou menos dia, do setor onde trabalho ou virei a trabalhar, pois quero mudar de ramo), e na qualidade de funcionário público, tenho descontado todos os meses um valor específico (e gordo) destinado à pagar à previdência e a saúde publica do Estado. Poderia eu utilizar da parafernália de médicos, enfermeiras, leitos e fármacos que estão pelo Estado a minha disposição; mas, não! Assim que entrei no serviço público minha zelosa mãe logo me intimou:"Meu filho! Faça um plano de saúde! Você não sabe o dia de amanhã. Não pode confiar na saúde do Estado e não tem sequer um leito em quarto particular". Ok,ok! Acabei cedendo aos apelos de minha amada mãezinha e feito o bendito do plano (um Unimed, que até hoje, não me dá lucro, nem prejuízo, mas não façamos merchandising sem necessidade, até porque eles não me pagariam nada por isso!). Agora, não deixo de pensar a ironia do destino: quando meu pai enfartou, foi num hospital público que foram prestados os primeiros socorros, foi lá que ele foi reanimado e lá onde permaneceu seus 5 dos 10 dias de UTI. Sou grato à equipe de profissionais do Hospital Estadual Walfredo Gurgel em Natal/RN. Se não fosse por eles (e Deus, em primeiro lugar) hoje eu seria orfão de pai. Longa vida à saúde pública do Brasil! Longa vida ao SUS!
É quando percebo o dilema norte-americano é que vejo o quanto "santo de casa não faz milagre" e da quantidade de discursos demagógicos que temos que ouvir na época das campanhas eleitorais, como se a saúde pública no Brasil fosse o nono círculo do inferno. Temos um certo governador de Estado e candidato à presidência que foi Ministro da Saúde, e não obstante sua elogiada gestão dentro do ministério no período do presidente que antecedeu a Lula, não vejo hoje ele dizendo nada acerca das maiores precariedades de nosso sistema, a não ser de combater o fumo, para ele: a maior e mais suprema fonte dos males. Se aqui nos vemos às voltas com o antitabagismo e as campanhas para evitar que nossos hospitais fiquem repletos de doentes com câncer de pulmão, digo que nos Estados Unidos a situação é bem pior, pois sequer 65 milhões de norte-americanos tem acesso a um médico de plantão.
O sistema norte-americano é mesquinho, pois deposita toda a responsabilidade dos estados-membros da federação americana à iniciativa do próprio doente. Deve ele, em termos preventivos, ao ingressar no mercado de trabalho, adotar um plano-empresa de serviços de saúde, que lhe garanta, nos termos da legislação trabalhista em vigor, o direito à assistência médica, tanto para ele, quanto para seus familiares. O que nem preciso dizer é o quanto isso gera um lucro grande para as seguradoras de saúde, no momento em que firmam convênios com as empresas privadas contratantes de mão-de-obra. O que os planos fazem lá, então, assemelha-se ao que é feito aqui no Brasil e na América Latina: quanto melhor o serviço, maiores as especialidades médicas e a quantidade de profissionais disponíveis, mais caro é o plano. É a lógica da livre concorrência do liberalismo clássico, que move o american healthy.
Mas eu pergunto uma coisa: e aqueles que não tem emprego ou não tem condições de pagar por um bom plano de saúde, como é que ficam? A política "assistencial" norte-americana prevê em sua legislação que no caso dos comprovadamente pobres (leia-se "miseráveis") e daqueles que não tem recursos para se manter, a lei prevê atendimento em caráter de urgência em qualquer canto dos Estados Unidos. Isto implica em dizer que se um pobre levar um tiro o hospital é obrigado a atender, mas não tem a obrigação de custear o tratamento do doente, tão logo ele se recupere do estado de emergência, se não tiver um plano de saúde. O que a reforma para o sistema de saúde de Obama propôs é que ao invés de somente aqueles que tem grana terem a oportunidade de ver custeadas suas despesas com saúde, mediante à adesão a planos privados, o Estado também proporciona à adesão dessas pessoas, a custos simbólicos, subsidiados pelo governo, que permitem que elas não estejam à margem do atendimento de serviços de saúde no país. Isso, na prática, universaliza o atendimento médico em todo o solo norte-americano, evitando que qualquer pessoa fique de fora do sistema. Socialismo? Não. Estado Social mais forte.
O que dá dor de cabeça e tira o sono dos opositores de Obama (membros do partido republicano, lobbystas dos seguros privados de saúde, e próprios integrantes do partido do cara) é que as medidas adotadas pelo presidente americano e aprovadas a fórceps pelo Congresso, reinventam o velho fantasma do intervencionismo estatal a cair sobre a "libertária mão invisível do mercado". Em uma palavra: socialismo. Tá certo que pensadores de lá autenticamente socialistas como Noam Chomsky, até podem perder os cabelos em explicar pra uma turba de parvos que o que Obama fez foi mero assistencialismo, e não a reprodução do programa de saúde de Fidel; mas a discussão está em outro nível ideológico, em outra frente: o que se questiona é a indiscutível necessidade do Estado (nem que seja como mera agência reguladora), diante de uma economia de mercado. É! Os magnatas de Wall Street parece que ainda não aprenderam com a crise econômica do ano passado.
Neste momento, distintos promotores de justiça e procuradores norte-americanos de vários estados do USA estão elaborando peças jurídicas, entrando com ações judiciais, tentando anular a lei hoje sancionada por Obama da reforma da saúde, alegando sua inconstitucionalidade. Não estão eles movidos por um mesquinho sentimento de ir de encontro a uma nobre iniciativa altruísta de promover saúde para todos, mas sim o que eles questionam é o velho embate filosófico entre regime de liberdades X intervenção do Estado, que marcou o cerne das disputas ideológicas durante toda a modernidade, quando alegam que a lei aprovada vai de encontro à décima emenda da Constituição Americana, do tempo de George Washington, que prevê à liberdade de comércio. O negócio é que os promotores da Flórida e Carolina do Sul não engoliram bem o fato de que a legislação aprovada prevê pena de multa pra quem não aderir a um plano. Faz até sentido, se eu compartilhasse do pensamento liberal.
O sistema de saúde para os mais pobres é visto sob uma certa ótica calvinista de uma ética protestante que vê o assistencialismo estatal como mera caridade, uma concessão aos "coitados" ,outsiders, que não conseguiram se adequar ao sistema. O capitalismo produz sua vilania quando, em prol de uma suposta "liberdade" de mercado, deixa milhões sem ter acesso a médicos e medicamentos, tão e simplemsente por entender que se trata de um detalhe contratual. Para os mais pobres na terra de Obama, só restava o Medicare, um serviço de saúde gratuito, bancado por iniciativa de movimentos sociais em convênio com o governo, que sequer atingiam 1/3 da população. Numa América Latina Católica, não estamos tão acostumados com tanta frieza técnica, porque o paternalismo do Estado vinculado à Igreja, durante muitos anos, fez desenvolver a filosofia de um Estado protetor dos mais fracos, mas sempre com a lógica:"os curativos são para eles, mas o médico sou em quem pago". Em função disso eu até entendo os apelos de minha querida mãe (e de todas as mães zelosas de nosso Brasil varonil) de que eu fizesse (pelo meu perfil de classe média) um plano privado.
Entendo que o abacaxi enfrentado por Obama na área de saúde lá nos States revela-se também aqui na atual campanha presidencial, quando os candidatos dos dois partidos majoritários muito parecidos vão apresentar projetos políticos distintos, bem relacionados com a dicotomia acima apresentada de mais Estado X menos Estado. Não sei até que ponto por aqui o discurso liberal triunfará, quando lá nos EUA, no berço do liberalismo, o papo já está sendo outro com as reformas promovidas pelo "socialista" Obama. Sei que gostaria muito de não ter que gastar meus parcos trocados com um plano de saúde que não uso, no momento em que ao sentir os sintomas de uma fritura mal deglutida, eu pudesse saber que bastava confiar no posto da prefeitura da esquina, ao invés de meu banheiro, sem a necessidade de um quarto individual, numa saúde pública efetivamente de todos. Sorry, mamãe!!!
No bom documentário Sicko-S.O.S. Saúde, o cineasta Michel Moore já tinha demonstrado o caos do sistema de saúde norte-americano, demonstrando que, no final das contas, na lógica capitalista de mercado, quem não tem dinheiro pra pagar, não tem médico. Quem reclama aqui no Brasil de nossos hospitais públicos sempre lotados, faltando leitos e repletos de doentes, espalhados pelo corredor, ao ver o filme de Moore deve dar graças a Deus de pobre ainda ter acesso a isso; pois na Terra do Tio Sam, do american way of life, se o indivíduo estrebuchar muito, acaba saindo do hospital direto pra cadeia, por perturbar a law and order, ao querer um tratamento médico minimamente humano e decente.
A própria máe de Obama, Ann Durham, no seu combate contra o câncer, foi vítima desse sistema. A mulher passou anos, enquanto seu jovem filho mestiço Barack formava-se em direito( preparando-se para ser o líder mundial que agora é), questionando os preços extorsivos e abusivos dos seguros de plano de saúde nos EUA, acabando por perder a vida ao recorrer a um deles. A discussão passa pelo velha tema do fetichismo do mercado, da lógica capitalista em querer transformar tudo em mercadoria, por um velho racionalismo contratualista "a la Denis Rosenfield" , tão enraizado pelo pensamento jurídico positivista, e da manjada sacanagem de transformar a vida e a saúde humana em negócio. Sim, estou falando dos famigerados planos de saúde!!
Ainda sou servidor público(digo, ainda, porque estou doido pra cair fora, mais dia ou menos dia, do setor onde trabalho ou virei a trabalhar, pois quero mudar de ramo), e na qualidade de funcionário público, tenho descontado todos os meses um valor específico (e gordo) destinado à pagar à previdência e a saúde publica do Estado. Poderia eu utilizar da parafernália de médicos, enfermeiras, leitos e fármacos que estão pelo Estado a minha disposição; mas, não! Assim que entrei no serviço público minha zelosa mãe logo me intimou:"Meu filho! Faça um plano de saúde! Você não sabe o dia de amanhã. Não pode confiar na saúde do Estado e não tem sequer um leito em quarto particular". Ok,ok! Acabei cedendo aos apelos de minha amada mãezinha e feito o bendito do plano (um Unimed, que até hoje, não me dá lucro, nem prejuízo, mas não façamos merchandising sem necessidade, até porque eles não me pagariam nada por isso!). Agora, não deixo de pensar a ironia do destino: quando meu pai enfartou, foi num hospital público que foram prestados os primeiros socorros, foi lá que ele foi reanimado e lá onde permaneceu seus 5 dos 10 dias de UTI. Sou grato à equipe de profissionais do Hospital Estadual Walfredo Gurgel em Natal/RN. Se não fosse por eles (e Deus, em primeiro lugar) hoje eu seria orfão de pai. Longa vida à saúde pública do Brasil! Longa vida ao SUS!
É quando percebo o dilema norte-americano é que vejo o quanto "santo de casa não faz milagre" e da quantidade de discursos demagógicos que temos que ouvir na época das campanhas eleitorais, como se a saúde pública no Brasil fosse o nono círculo do inferno. Temos um certo governador de Estado e candidato à presidência que foi Ministro da Saúde, e não obstante sua elogiada gestão dentro do ministério no período do presidente que antecedeu a Lula, não vejo hoje ele dizendo nada acerca das maiores precariedades de nosso sistema, a não ser de combater o fumo, para ele: a maior e mais suprema fonte dos males. Se aqui nos vemos às voltas com o antitabagismo e as campanhas para evitar que nossos hospitais fiquem repletos de doentes com câncer de pulmão, digo que nos Estados Unidos a situação é bem pior, pois sequer 65 milhões de norte-americanos tem acesso a um médico de plantão.
O sistema norte-americano é mesquinho, pois deposita toda a responsabilidade dos estados-membros da federação americana à iniciativa do próprio doente. Deve ele, em termos preventivos, ao ingressar no mercado de trabalho, adotar um plano-empresa de serviços de saúde, que lhe garanta, nos termos da legislação trabalhista em vigor, o direito à assistência médica, tanto para ele, quanto para seus familiares. O que nem preciso dizer é o quanto isso gera um lucro grande para as seguradoras de saúde, no momento em que firmam convênios com as empresas privadas contratantes de mão-de-obra. O que os planos fazem lá, então, assemelha-se ao que é feito aqui no Brasil e na América Latina: quanto melhor o serviço, maiores as especialidades médicas e a quantidade de profissionais disponíveis, mais caro é o plano. É a lógica da livre concorrência do liberalismo clássico, que move o american healthy.
Mas eu pergunto uma coisa: e aqueles que não tem emprego ou não tem condições de pagar por um bom plano de saúde, como é que ficam? A política "assistencial" norte-americana prevê em sua legislação que no caso dos comprovadamente pobres (leia-se "miseráveis") e daqueles que não tem recursos para se manter, a lei prevê atendimento em caráter de urgência em qualquer canto dos Estados Unidos. Isto implica em dizer que se um pobre levar um tiro o hospital é obrigado a atender, mas não tem a obrigação de custear o tratamento do doente, tão logo ele se recupere do estado de emergência, se não tiver um plano de saúde. O que a reforma para o sistema de saúde de Obama propôs é que ao invés de somente aqueles que tem grana terem a oportunidade de ver custeadas suas despesas com saúde, mediante à adesão a planos privados, o Estado também proporciona à adesão dessas pessoas, a custos simbólicos, subsidiados pelo governo, que permitem que elas não estejam à margem do atendimento de serviços de saúde no país. Isso, na prática, universaliza o atendimento médico em todo o solo norte-americano, evitando que qualquer pessoa fique de fora do sistema. Socialismo? Não. Estado Social mais forte.
O que dá dor de cabeça e tira o sono dos opositores de Obama (membros do partido republicano, lobbystas dos seguros privados de saúde, e próprios integrantes do partido do cara) é que as medidas adotadas pelo presidente americano e aprovadas a fórceps pelo Congresso, reinventam o velho fantasma do intervencionismo estatal a cair sobre a "libertária mão invisível do mercado". Em uma palavra: socialismo. Tá certo que pensadores de lá autenticamente socialistas como Noam Chomsky, até podem perder os cabelos em explicar pra uma turba de parvos que o que Obama fez foi mero assistencialismo, e não a reprodução do programa de saúde de Fidel; mas a discussão está em outro nível ideológico, em outra frente: o que se questiona é a indiscutível necessidade do Estado (nem que seja como mera agência reguladora), diante de uma economia de mercado. É! Os magnatas de Wall Street parece que ainda não aprenderam com a crise econômica do ano passado.
Neste momento, distintos promotores de justiça e procuradores norte-americanos de vários estados do USA estão elaborando peças jurídicas, entrando com ações judiciais, tentando anular a lei hoje sancionada por Obama da reforma da saúde, alegando sua inconstitucionalidade. Não estão eles movidos por um mesquinho sentimento de ir de encontro a uma nobre iniciativa altruísta de promover saúde para todos, mas sim o que eles questionam é o velho embate filosófico entre regime de liberdades X intervenção do Estado, que marcou o cerne das disputas ideológicas durante toda a modernidade, quando alegam que a lei aprovada vai de encontro à décima emenda da Constituição Americana, do tempo de George Washington, que prevê à liberdade de comércio. O negócio é que os promotores da Flórida e Carolina do Sul não engoliram bem o fato de que a legislação aprovada prevê pena de multa pra quem não aderir a um plano. Faz até sentido, se eu compartilhasse do pensamento liberal.
O sistema de saúde para os mais pobres é visto sob uma certa ótica calvinista de uma ética protestante que vê o assistencialismo estatal como mera caridade, uma concessão aos "coitados" ,outsiders, que não conseguiram se adequar ao sistema. O capitalismo produz sua vilania quando, em prol de uma suposta "liberdade" de mercado, deixa milhões sem ter acesso a médicos e medicamentos, tão e simplemsente por entender que se trata de um detalhe contratual. Para os mais pobres na terra de Obama, só restava o Medicare, um serviço de saúde gratuito, bancado por iniciativa de movimentos sociais em convênio com o governo, que sequer atingiam 1/3 da população. Numa América Latina Católica, não estamos tão acostumados com tanta frieza técnica, porque o paternalismo do Estado vinculado à Igreja, durante muitos anos, fez desenvolver a filosofia de um Estado protetor dos mais fracos, mas sempre com a lógica:"os curativos são para eles, mas o médico sou em quem pago". Em função disso eu até entendo os apelos de minha querida mãe (e de todas as mães zelosas de nosso Brasil varonil) de que eu fizesse (pelo meu perfil de classe média) um plano privado.
Entendo que o abacaxi enfrentado por Obama na área de saúde lá nos States revela-se também aqui na atual campanha presidencial, quando os candidatos dos dois partidos majoritários muito parecidos vão apresentar projetos políticos distintos, bem relacionados com a dicotomia acima apresentada de mais Estado X menos Estado. Não sei até que ponto por aqui o discurso liberal triunfará, quando lá nos EUA, no berço do liberalismo, o papo já está sendo outro com as reformas promovidas pelo "socialista" Obama. Sei que gostaria muito de não ter que gastar meus parcos trocados com um plano de saúde que não uso, no momento em que ao sentir os sintomas de uma fritura mal deglutida, eu pudesse saber que bastava confiar no posto da prefeitura da esquina, ao invés de meu banheiro, sem a necessidade de um quarto individual, numa saúde pública efetivamente de todos. Sorry, mamãe!!!
segunda-feira, 15 de março de 2010
CINEMA: O filme "Educação" é bem heideggeriano.
Nick Hornby é o novo Norman Mailer. Se este último foi o expoente da contracultura dos anos 60, Hornby simboliza a nova geração de escritores da era pós-Beatles. Aos 52 anos, além de publicar vários livros, este escritor inglês descobriu um novo talento: o cinema. Além de suas obras serem transformadas em filmes, ele também virou roteirista e produtor executivo de películas que agradam tanto à crítica quanto ao público.
Foi o caso de Alta Fidelidade (livro que resultou no ótimo filme com John Cusack) ou Febre de Bola (que trata de uma das paixões do escritor: o futebol, através de seu amado time, o Arsenal), e Um Grande Garoto (que também virou filme, com Hugh Grant), além de Como ser Legal, outra obra sua que ainda não foi adaptada para os cinemas. Os livros de Hornby são bons e agradam porque tratam da crônica social londrina de personagens obscessivos que poderiam estar em qualquer lugar, porque gozam das angústias e agruras típicas de quem se encontra dos 20 aos 40 anos. Em todos os livros há um universo repleto de música (que ele adora, como colecionador de discos antigos) e referências pop. Nos últimos anos o escritor vem refinando sua escrita, o que resultou no bom e surpreendente filme Educação.
Educação não é baseado em outro livro de Hornby, mas sim em sua habilidade como roteirista, na adaptação do livro de memórias da jornalista Lynn Barber, onde, desta vez, o personagem é uma mulher e jovem. Apesar de não ser uma ideia original de Hornby, em todo o filme percebe-se a influência do estilo do escritor inglês, na série de referências à musicalidade, o estímulo à transgressão como forma de delimitar a identidade juvenil, e o universo de intelectuais e beatnicks, além dos diálogos inteligentíssimos e engraçados, que são a marca da espirituosidade do autor de Alta Fidelidade.
No filme, a atriz Carey Mulligan, de 26 anos, convence interpretando Jenny, uma garota 10 anos mais nova. Uma adolescente inglesa oriunda de uma working class family, numa Inglaterra do começo dos anos sessenta, quando os Beatles ainda não tinham estourado, que consegue se destacar nos estudos, a fim de conquistar uma tão sonhada vaga na universidade de Oxford. Para isso, ela conta com o esforço e a dedicação vigilante de seu austero, mas amoroso pai (interpretado pelo sempre ótimo Alfred Molina), além do apoio da professora do colégio, que vê em Jenny uma autêntica promessa de sucesso acadêmico. A menina se esforça, desde as aulas de francês(que adora), ciello e latim, enquanto escuta em casa seus discos de Edith Piaf, além de ter uma preferência toda especial por arte (especiamente pelos pintores pré-rafaelistas). É, Jenny não é uma adolescente comum, ou, ao menos, é diferente de suas amigas de escola, por sua inteligência, curiosidade de conhecer o mundo e por aparentar uma maturidade que realmente não tem (em uma passagem do filme, muito bacana, Jenny reconhece a sua professora, que às vezes se sente uma "velha, mas não sábia"). É justamente no caminho dessa menina brilhante que aparece a figura de David (Peter Saarsgard, uma versão mais nova e com cabelo de John Malkovich), um trintão bonitão, bem mais velho que a garota, sedutor, inteligente, com seu carisma aveludado, um belo carro esporte, gosto por vinhos e roupas caras, e um apreço especial por arte, música clássica, viagens e diversão pra valer à noite, com seus amigos tão bon vivants quanto. Enfim: um príncipe encantado!!
Como não poderia deixar de ser, Jenny se encanta com seu "novo namorado" e passa a viver com ele um prematuro ritual de passagem da adolescência para a vida adulta, com todo o ônus e o bônus das difíceis escolhas que alguém que está crescendo acaba por ter que tomar. Transformada numa típica princesinha por David, Jenny torna-se um novo ser, ou na verdade, torna-se alguém que sempre foi o que era, na mudança de visual e nos trajes que a transformam de uma adolescente colegial, para uma típica Audrey Hepburn moderna, com direito a flerte em Paris, e tudo mais que corresponde ao sonho adolescente de toda garota romântica. Sabemos por uma ordem natural das coisas, pelo andar da carruagem, que uma hora Jenny irá quebrar a cara, o encanto será desfeito, o príncipe encantado mostrará seus defeitos, e ela terá que avaliar o peso de suas escolhas, mas isso eu deixo pra quem quiser assistir o filme.
Na verdade, por sua própria narrativa, pode-se dizer que Educação não seria uma novidade e retoma velhos clichês do gênero, no típico caso das historinhas românticas de "a girl meet a boy", mas não é bem assim. Creio que a indicação para o Oscar deste ano, de melhor atriz para Carey Mulligan (que perdeu pra Sandra Bullock, mas isso já não é novidade) já compensa o fato de ir assistir o filme, pois a atuação de seus personagens é impecável, e o que nos chama atenção no drama de Jenny é a cumplicidade que nos gera, fazendo com que durante todo o filme nós fiquemos na torcida de nossa "heroína", e vibremos com sua "volta por cima"; o que dá todo o sentido do título do filme, quando, chamada a pensar sobre seu futuro com David ou o prosseguimento dos estudos, é que Jenny é chamada à maturidade, para fazer difíceis decisões que talvez ainda não tenha idade para fazer.
Percebo no filme um "quê" da filosofia de Heidegger, sobre seu conceito de amor, que muitos acreditam não estar presente na obra desse filósofo alemão. O dasein amoroso pode ser encontrado nas entrelinhas de Ser e Tempo, obra máxima do teórico da Floresta Negra, seja em seus estudos sobre Pascal e Agostinho, seja na correspondência que manteve com o amor de sua vida, a também filósofa Hanna Arendt.
O dasein de Heidegger é o "ser-aí", ou "ser-no-mundo"; ou seja, traduzindo para os leigos o ente (nós e tudo, enquanto existência), já chegamos no mundo com certas características transcendentes, dentre elas, a abertura para o amor. Antes de todo e qualquer conhecimento, somos seres capazes de amar, e esse amor é que nos faz ser quem somos. É quando Agostinho fala: "eu te amo-quero que sejas quem tu és!". Foi assim que Heidegger cultivou seu amor por Hannah, que estava fadado a não acontecer, ou a existir somente na distância. Ele era casado e se apaixonou por sua aluna, 17 anos mais jovem, uma "apátrida judia" que se envolveu com o professor, comprometido com o nazismo, numa relação de encanto e desencanto que só o labor filosófico poderia explicar. Apesar de alegar que Hannah foi a paixão de sua vida, é certo que Heidegger, até seus 80 anos, teve várias mulheres (todas alunas), cada vez mais jovens, mas nunca se separou da esposa Elfride, mãe de seus filhos. Entre essa indefinição do ser do amor, diz Heidegger em uma de suas cartas a sua jovem amante: "Tal como és por inteiro, e tal como irás permanecer, é assim que te amo".
Esse é o dilema amoroso heideggeriano que encontro no filme de Hornby. De um lado, temos David, mais velho, experiente, cheio de si, mas que, na verdade não tem a exata segurança de ser quem é ou de com quem quer estar de fato (por motivos revelados, pra quem assistir o filme); de outro, Jenny, em seu dasein amoroso, na sua abertura para o mundo que lhe diz através do amor quem ela é, e que no meio dessa descoberta, revela-se a si própria as decisões que somente ela poderá fazer. Não se trata apenas de fazer uma opção pela solidão ou pelo convite ao amor eterno, mas sim uma opção por existir, por se tornar um "ser-aí-no mundo".
Para Heidegger, o homem experencia o mundo através de suas paixões. É assim que ele proporciona sua abertura e retraímento para seu próprio existir. A paixão pode abrir e fechar portas, seja sob a forma de amor ou ódio, mas o que mais me impressiona nesse trajeto é uma velha tese a que me apego, e que o filme visto me fez voltar a refletir: amor é aprendizado, e pagando um tributo à experiência, creio que é essa a lição verdadeira que Jenny aprende, e que pessoas como eu também, à medida que vão envelhecendo, também vão aprendendo, e pesam, numa abertura e fechamento heideggerianos, os efeitos de suas escolhas e a repercussão destas para a nossa vida hoje.
Creio que tanto para a personagem Jenny do filme, quanto para outras pessoas que vivem situação semelhante, só tenho mais algo a dizer, a título de testemunho de um certo "bode velho" em determinados assuntos afetivos: na pior das hipóteses, mesmo que seja doloroso, vale à pena quebrar os sapatinhos de cristal, pois ao menos aprendemos que os príncipes (ou princesas) encantados estão apenas no lugar onde devem estar: nos sonhos, e que a verdadeira realeza está em saber existir: a melhor forma de aprendizado, certamente, uma boa educação! Besos a todos!!!
sexta-feira, 12 de março de 2010
HOMENAGEM: Adiós, Glauquito!!!
Se houver um céu para os cartunistas, ele deve ser todo rabiscado, caótico e cheio dos tipinhos mais engraçados e esquisitos, se forem conforme a forma sacana como Glauco os concebeu. Glauco Villas Boas ( 1957-2010) era um dos melhores cartunistas surgidos no Brasil na fase pós-ditadura. Com seus personagens nas tiras do jornal Folha de São Paulo ou na antológica revista Chiclete com Banana, Glauco fazia, junto com seus companheiros Angeli e Laerte, o trio parada dura do humor gráfico nacional, os los tres amigos da charge brasileira e um dos mais marcantes traços dos anos 80.
É! Em outro artigo neste blog, do ano passado, sobre a morte de Michael Jackson, eu comento que os anos 80 estão começando a morrer aos poucos, não apenas como uma época que não vem mais, mas sim porque seus principais representantes estão morrendo. Só que no caso de Glauco de forma muito mais trágica e violenta: Glauco, aos 53 anos, e seu filho Raoni, de 25, foram brutalmente assassinados, em Osasco, nas proximidades onde Glauco residia desde então com a família e onde, numa descoberta religiosa, tinha fundado uma igreja, onde se dedicava à recuperação de drogaditos. A tragédia maior foi que, de acordo com os relatos da polícia e com as informações que chegam no dia de hoje pela imprensa, tudo indica que o suspeito que disparou os tiros fatais que tomaram a vida de Glauco e de seu filho, foram de um rapaz conhecido das vítimas, um morador da vizinhança, alguém a quem Glauco já tinha tentado ajudar.
Não vou aqui no meu blog me portar como criminólogo (o que também sou) e analisar friamente como acadêmico a morte de Glauco. Não me interessam os motivos, as circunstâncias ou o desenrrolar dos fatos que resultou no triste fim do cartunista brasileiro. O que me interessa é falar como fã, escrever como um assíduo apreciador do humor nacional e de como Glauco, assim como Angeli com seus personagens inesquecíveis (tais como a Rê-Bordosa e o Bob Cuspe) e Laerte, com seus Piratas do Tietê, serviram para alegrar minha vida de adolescente na segunda metade dos anos 80 e como jovem adulto, universitário, no começo dos anos 90. É lembrando disso que chego à tacanha constatação: Glauco faz falta, e como bons humanos imperfeitos que nós somos, nós só nos damos conta disso quando as pessoas partem, quando elas morrem.
Um dos personagens mais icônicos desenhados por Glauco era o Geraldão: um típico porralouca, drogado, peladão e punheteiro, que vivia entupido de seringas, mas, de forma escandalosa, sempre queria ficar mais chapado. Que ironia do destino!! Que coisa mais tétrica! Pois foi justamente um drogado que armado de um revólver tirou a vida daquele que procurou retratar, de forma bem-humorada( se é que isso é possível), o universo da drogadição.
Glauco tinha esse humor irônico de fazer graça de coisas sérias, de tirar a mais risível piada das situações mais escabrosas. No depoimento emocionado de Angeli prestado a rádio UOL, este, mantendo o bom-humor de cartunista, apesar da tristeza, captou bem o espírito do amigo de longa data que agora se foi, dizendo o quanto Glauco inovou o humor nacional no período pós-ditadura, lidando com leveza com temas sérios, fazendo brincadeira com temas políticos espinhosos como a censura e a tortura, sem perder sua genuína inteligência. Eu poderia dizer que, a meu ver, o humor de Glauco assemelhava-se ao humor fino do antológico grupo inglês Monty Phyton, politicamente incorreto, caótico, sacana, despojado, sexista até (para muita gente), mas com uma pitada legítima de genialidade. Inesquecível é a paródia que Glauco fazia dos assédios sexuais em escritório, retratando a secretária Dona Marta, aquela que vivia mostrando os peitos pro chefe ou pro pessoal da repartição, ninfomaníaca assumida, que invertia o jogo sexista da sedução, e, ao invés de ser ela a "comida", era ela a comedora. Através da brincadeira, Glauco inverteu os papéis na sociedade machista de então, e ele mesmo popularizou a revolução sexual e a emancipação da mulher, através de uma personagem "devoradora de homens".
As charges políticas então, que vocês podem ver aqui neste blog, retratando desde a era Sarney, até o governo Itamar e FHC são impagáveis, imperdíveis, um verdadeiro documento histórico do período. A realidade social, os principais problemas nacionais, os dramas humanos vividos pela classe trabalhadora e pelos excluídos, o descaso das elites, o desmatamento ambiental, as guerras, está tudo ali nos desenhos de Glauco; tudo ali, de forma despojada, no traço simples mais originalíssimo desse chargista paranaense, mas de alma paulista, que desde cedo começou a inventar o seu traço característico, mas só no final dos anos 70 conseguiu, com muita picardia, compor uma leva de novos cartunistas brasileiros que revolucionou o humor nacional do fin de siècle. Glauco Villas Boas é referência obrigatória para quem quer conhecer e entender de humor, e alguém que faz muita falta mesmo, em tempos boquirrotos, onde o marasmo e o mau-humor neoliberal querem dar as caras novamente, em tempos de eleição.
É, estou triste! O mundo sempre perde mais a graça quando morre alguém bem-humorado! Esteja em paz, Glauco!
segunda-feira, 8 de março de 2010
DIA INTERNACIONAL DA MULHER: Porque as mulheres não servem apenas pra propaganda de cerveja: minha homenagem ao 8 de março.
"Quem dera, pudesse todo homem compreender, oh mãe, quem dera! O super-homem venha nos restituir a glória. Mudando como um Deus o curso da história: por causa da mulher!". É ouvindo a célebre canção de Gilberto Gil que comento esse dia especial para todas as mulheres do meu Brasil varonil. Quer dizer, não só apenas do Brasil, da América, do mundo, do planeta. Como seres temporais que somos, a humanidade adora eternizar uma data (e o brasileiro aproveita pra fazer um feriado!) e hoje, 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher, um marco naturalmente para o movimento feminista e todos os segmentos engajados da sociedade civil que apoiam as lutas de um gênero durante séculos tão secundarizado, minimizado, e subjugado pelo machismo, chauvismo, patriarcalismo e todos os "ismos" que você permitir do gênero oposto: nós, homens! Nós, essas bestas truculentas e às vezes, insensíveis, mas que as mulheres não podem viver sem. Nós, a quem elas tanto amam, seja como pais, irmãos, primos, tios, sobrinhos,amigos, namorados, maridos, amantes, colegas de trabalho, sala de aula ou patrões. É, as mulheres nos adoram, apesar de tudo, e já as sacaneamos tanto!!!
Nesse dia especial, tomo a liberdade de comentar curiosos artigos que saíram na edição dominical da Folha de São Paulo de ontem (7 de março), no Caderno Mais, contando com dois extensos artigos escritos, respectivamente, pelo filósofo Renato Janine Ribeiro, da USP e pela professora da PUC/SP Lucia Santaella. Ambos comentam a polêmica suspensão pelo CONAR da propaganda da cerveja Devassa, após aparecer o comercial mostrando a socialite e dublê de atriz Paris Hilton, em poses sensuais, erotizando a já erotizada relação que nós, homens, fazemos entre mulher e garrafa de cerveja. Digo isso porque, de fato, em nossa safadeza mental, que deram vazão a tantas "dancinhas da garrafa", associamos a garrafa de cerveja a um instrumento fálico, e é por isso que vemos tantos comerciais envolvendo mulher bonita, das quais a atriz Juliana Paes é uma das grandes musas. Ou ninguém se lembra da propaganda daquela cerveja que se dizia que era: "a boa"???
Mau gostos a parte, permitam-me analisar os comentários de ambos os intelectuais que escreveram para a Folha acerca do assunto. O professor Janine Ribeiro questionou a atuação tardia do CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) porque em outros casos polêmicos de "mulheres-garrafas", o órgão não se manifestou, e agora, numa propaganda que chega a ser até trivial, cria-se uma decisão que, no âmbito das feministas, pode até ser uma conquista. Vejamos bem! Trata-se afinal de erotismo ou sexismo? Ribeiro cita um autor árabe para dizer que o erotismo emana de um corpo velado: o que conta é o ato de "imaginar pelo som das joias se chocando, pelo perfume, pelo movimento do corpo andando", enfim, para o filósofo paulista: "erotismo é imaginação".
Concordo em parte com o argumento do professor Janine Ribeiro. Entretanto, fico a imaginar a velha discussão entre os limites do que é erotismo e o que é pornografia, ao pensar na polêmica (e suspendida em alguns países), propaganda da cerveja Guinnes, uma das mais tradicionais cervejas do mundo. Para as minhas horrorizadas leitoras feministas, aí vaí o link da propaganda para que fiquem à vontade para manifestar sua opinião: Propaganda Cerveja Britânica Após verem o vídeo, questiono se a vulgaridade do comercial estrelado por Paris Hilton é superior a certas barbaridades que vemos por aí, em prol de uma suposta liberdade de expressão, liberdade de mercado, ou ânsia publicitária de ganhar dinheiro mesmo, às custas da exploração do corpo (e da dignidade) da mulher.
Nesse sentido, no mesmo jornal, vem o artigo levantando outra tese, da professora Lucia Santaella, comentando que a decisão do CONAR de suspender a propaganda da cerveja Devassa, "deu até no New York Times". A professora comenta que o CONAR levou em conta na decisão as denúncias da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, que considerou a propaganda "sexista e desrespeitosa". Mas, peraí! Antes que eu continue! Não existe toneladas de peças publicitárias pelo Brasil afora que podem indicar ser tão sexistas ou desrespeitosas tanto?? Ou será que a publicidade ou as músicas do grupo Calcinha Preta são pérolas de elogio à dignidade feminina?? A professora da PUC cita a experiência envolvendo publicitários alemães de marcas de cerveja, que ao virem ao Brasil ficaram impactados com o forte grau de sexismo e a frequente associação de cerveja com mulher, nos comerciais divulgados pela publicidade brasileira. Disse ela que segundo a preferência estilística dos publicitários germânicos, eles preferem enfatizar em seus comerciais a origem natural dos ingredientes da bebida, ou o prazer socializador da cerveja, com comerciais onde amigos bebem juntos ( o que é comum também na nossa publicidade). Ah, tá! Até concordo com os argumentos, mas também penso que num país latino-americano como o Brasil, com sua sensualidade tropical e um suposto "liberalismo de costumes"(tirando o episódio da minissaia da Uniban), o exibicionismo das passistas e modelos nos desfiles do Carnaval carioca, e as roupas sumárias de nossas dançarinas de forró e axé-music, creio que o pito dado pelo CONAR a senhorita Paris Hilton foi até pesado demais!
Não sou fã da vulgaridade, apenas me excito com o erotismo, como é a proposta de qualquer peça ou manifestação artística que o tenha o próposito de erotizar. Mulher de lingerie é erótico, mas apresentá-la mostrando a bunda já dá sinais de vulgaridade.Voltando ao texto de Janine Ribeiro, ele disse que durante décadas a revista Playboy no Brasil estrelava suas capas com atrizes brasileiras nuas, e que agora a dinâmica é colocar ex-integrantes do programa Big Brother. Concordo, posso até dar uma espiada, mas não gasto meu dinheiro com isso! Porém, Ribeiro acrescenta um argumento interessante: não se trata mais de simplesmente considerar que o corpo da mulher tornou-se um objeto (no caso, um objeto à disposição da fetichização do mercado capitalista); mas sim de que também através do corpo, a mulher que posa nua exerce uma certa relação de poder através do desejo (poder econômico, principalmente, já que muitas turbinam suas carreiras ao tirar a roupa). O problema não está em se despir (tese de Janine Ribeiro), mas sim que o poder obtido com a fetichização do corpo feminino não é universal e nem majoritário, pois ao mesmo tempo em que atrizes e "big sisters" tiram a roupa diante das câmeras, faturando uma boa grana com isso, milhares de mulheres são despidas à força, atacadas sexualmente pelas ruas, sem ter a menor condição de defesa. Aí sim, a erotização deixa de produzir poder, e produz violência.
Acredito que o erótico perpassa a relação entre os gêneros e pode ser difundido tanto de homens para mulheres, quanto vice-versa. Garotas adolescentes suspiram ao ver as fotos e o torso nu de jovens galãs como Robert Pattinson e Taylor Lautner, da série Crepúsculo e Lua Nova, assim como o ator pornô Alexandre Frota, e alguns jogadores de futebol, fazem sucesso em capas de revistas gays. O erotismo não é uma qualidade apenas feminina, apesar de durante séculos o corpo da mulher ter sido tão explorado, principalmente na pintura. Retorno à discussão da vulgaridade por acreditar que comerciais como o da cerveja Devassa podem pecar pela falta de seu principal propósito: o erotismo, rendido à vulgaridade.
Sim, pois detesto mulher vulgar! Sei que muitos homens (e amigos meus) gostam do estilo de "mulher pistoleira", daquelas que está escrito na testa: "sou uma bandida", ou que se valem da vulgaridade como um certo exercício de poder (vide Foucault, em História da Sexualidade). Ok,ok!Gosto não se discute, mas na minha preferência por garotas mais "sérias"(digamos assim), tipinhos nerds ou meio indies, num tesão pueril a la Zooey Deschanel, não deixo de ver a dimensão do erotismo muito mais enfatizada por detrás da suposta pureza, daquilo que está por se descobrir, por ser desvelado, e aí é que esta, a meu ver, a lógica de todo o desejo que leva à inteligência da mensagem erótica. Algo é erótico por ser espontâneo, por ser convidativo, por despertar a curiosidade, até mesmo um certo voyerismo, e essa é uma das qualidades encantadoras do gênero humano, especialmente das mulheres, quando querem, sinceramente, conquistar um homem. Aí sim acredito que, de fato, as mulheres se mostram mais uma vez superiores, aí sim elas se valorizam e são mais valorizadas, pois não adianta em nada (e, perdoem-me as feministas) se a mulher só disputar com o homem melhores salários, melhores condições de trabalho, melhores oportunidades, os mesmos direitos, se também ela não afirmar sua feminilidade e sua supremacia sobre o homem a partir do encanto, a partir do desejo. Mulheres são encantadoras porque são sensuais, porque se valorizam, porque apresentam, muitas vezes, uma autoestima bem maior que a dos homens, e sabem do valor que seus corpos (e suas almas) tem no denso imaginário masculino.
Gosto de mulheres porque são mulheres, ou seja, não são apenas fêmeas, de um sexo oposto, que por um destino da natureza, devemos transar e reproduzir, mas sim porque o encanto erótico da mulher não se prende apenas ao coito, ao acasalamento. Mulheres encantam porque conseguem nos deixar, homens, extasiados, pelo seu mero contato, pelo seu cheiro, forma de deixar cair os cabelos, sorrisos, forma de andar, pelos trajes, maquiagens e adereços que usam. É nisso que reside o erotismo, e não tem nada haver com vulgaridade. Creio ser possível fazer comerciais sensuais, publicidade de bom gosto, eroticamente bem traçada, valorizando a mulher em seu encanto erótico, e não a reduzindo a um mero pedaço de carne. Homem gosta sim de mulher bonita, homem quer sim sentir desejo e tesão por uma mulher que ele ache gostosa, mas nem por isso ele quer que simplesmente as mulheres saíam tirando a roupa por aí, imitando a atriz pornô Monica Mattos ou a veterana Cicciolina. Não gosto da Paris Hilton porque acho ela sem graça, até cômica nos seus trejeitos desajeitados de femme fatalle, mas acho que a decisão do CONAR pegou mais pela pessoa que estava estrelando o comercial (uma figura crônica nos tablóides, recordista de escândalos, que já apareceu na internet transando com o namorado e que adora aparecer), do que propriamente pelo caráter "sexista e desrespeitoso" da peça publicitária, atribuído pela nossa Secretaria Especial de Mulheres.
Pois é! Mulher pra mim não é só uma gostosona em propaganda da cerveja, sem dúvida, mas como todo homem gosto (e acredito que toda mulher goste de que o homem goste) de ver uma mulher e acha-la gostosa. É por isso que as propagandas de cerveja adoram colocar mulheres como protagonistas. Afinal, se mulher é gostosa, cerveja também é; portanto, por que não associar duas boas "coisas" da vida? O problema não é associar mulher ao tesão, mas sim transformar a mulher em coisa em prol desse tesão. É nisso que entendo quando o movimento feminista acusa as propagandas de serem sexistas; mas, nas propagandas de perfume, já é possível ver o belo ator britânico Jude Law, também encantando as mulheres com sua virilidade. Portanto, o sexismo não é só masculino, mas creio que de ambos os gêneros, e a publicidade, lógico, explora isso. Para mim, que sou heterossexual, mulheres são maravilhosas não apenas porque nos geram(mães), nos acompanham (irmãs), são nossas parceiras (amigas), nos levam ao gozo (amantes), nos comprometem (esposas) ou nos servem de inspiração (musas), mas porque nos excitam, graças a todo o erotismo genuíno que carregam consigo e que nos deixam loucos. É muito bom se relacionar com uma mulher, amar uma mulher, conquistar uma mulher e, acima de tudo, desfrutar dos mistérios que povoam o complexo imaginário das mulheres. Deve ser por isso que privilegio minhas amizades com as mulheres, apesar de saber que jamais, na minha insignificância, considerei compreendê-las de todo. Afinal, perderia a graça, não é mesmo??!!
Valorizo o 8 de março porque valorizo as lutas da mulher como trabalhadora e revolucionária, injustiçada durante séculos pelo poder masculino, mas também valorizo a mulher pelo poder que ela extraí de seu próprio encanto: por essa mágica maravilhosa e adorável de ser mulher, e que me deixa tão encantado, e com a certeza de que não consigo mesmo viver sem mulher, sem amar vocês todas: maravilhosas mulheres.Se alguém me pergunta se não sou machista ao exercitar meu encantamento toda vez que me excito ao ver uma mulher bonita, digo: não, não sou machista, apenas gosto de mulher!!!
Aproveito inclusive o ensejo para elogiar outra conquista histórica das mulheres ontem, na entrega do Oscar. Graças ao filme Guerra ao Terror, a cineasta Kathryn Bigelow tornou-se a primeira mulher na história a ganhar um Oscar de melhor direção, desbancando Avatar, o filme concorrente favorito, de seu ex-marido James Cameron. Um feito e tanto, às vesperas de uma data simbólica para as mulheres. Parabéns!!
FELIZ 8 DE MARÇO, MINHAS QUERIDAS LEITORAS, MINHAS QUERIDAS MULHERES!! VOCÊS MERECEM A FELICIDADE DO MUNDO, POR GARANTIR A NÓS HOMENS, A FELICIDADE DE A TERMOS, MARAVILHOSAS MULHERES!! GRAÇAS A VOCÊS PODEMOS RESTITUIR A GLÓRIA DA HISTÓRIA: "POR CAUSA DA MULHERRR!!!", TOCA GIL!
sexta-feira, 5 de março de 2010
FILOSOFIA DA LINGUAGEM: Como entender um "pé na bunda" utilizando Wittgenstein:como as mulheres são sintáticas e os homens são semânticos.
Na última semana tive a oportunidade de conversar com duas amigas com assuntos semelhantes: ambas estavam pensando em terminar suas relações com seus últimos namorados. Ensaiavam qual seria o melhor "fora", a melhor negativa, ou seja, enfim o melhor "pé na bunda". Tentei prender dentro do mim o corporativismo masculino que acompanha o homem nessas horas, solidarizando-me com os pobres namorados enxotados da vida de suas respectivas, e busquei entender mais uma vez o enigmático, imperscrutável, mas sedutor universo feminino. Escutei as razões de ambas, pude comparar com situações anteriores (inclusive as minhas) e após ter escutado tantos relatos, cheguei a seguinte conclusão que há algum tempo me serve de hipótese e me acompanha: nas relações amorosas as mulheres são sintáticas e os homens são semânticos.
Mulheres se valem de simbolismos enquanto que os homens necessitam da intermediação das palavras, da linguagem falada ou escrita para interiorizar as mensagens do sexo oposto. Digo isso levando em consideração os conceitos de sintaxe e semântica na linguística a partir do estudo da pragmática, nos tratados de semiótica. A sintaxe se preocupa com a composição dos símbolos entre si, o jogo de palavras, gestos ou sinais, dentro de um significado mais amplo; ou seja, a sintaxe trabalha com símbolos. Já a semântica diz respeito à representação entre os sinais e a realidade, interpreta o significado desse sinal de acordo com a forma como se apresenta; ou seja, a semântica ocupa-se de sinais, preocupa-se com as palavras e o significado que elas tem na linguagem.
Ludwig Wittgenstein (1889-1951) foi um filósofo austríaco que melhor estudou a linguagem no século XX. O interesse por sua obra o elevou a ícone pop pelo fato de que na filosofia de Wittgenstein pode se falar praticamente de tudo, pois ele era um apaixonado pelas questões mais intrigantes do ser humano.Célebre é sua obra Tratactus, sua tese de doutorado, assim como suas Anotações sobre as Cores. Ele entendia que a filosofia não é apenas um âmbito de reflexão, mas uma forma de vida: "a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade". Por viver a filosofia é que Wittgenstein tornou-se um autor de escrita tão intimista e peculiar, que seduziu seus leitores e interlocutores, seja através de suas obras filosóficas, ou por meio de suas cartas.
Wittgenstein, por exemplo, vai anteceder os blogueiros, pelo menos alguns que, como eu, acreditam que o blog é um espaço para falar de si e para falar do mundo e com o mundo, ou seja, um ambiente virtual para filosofar. Ele se valia de diários (assim como, hoje, nós nos valemos dos blogs, nossos diários virtuais) para expressar seus pensamentos pois entendia que "o diário é um laboratório filosófico". No diário não temos somente a liberdade de escrever, temos a liberdade de pensar, e podemos sempre reativar o nosso pensar através da escrita (papel fundamental da linguagem): "Apenas não se importar com aquilo que uma vez se escreveu! Apenas começar sempre de novo a pensar, como se ainda não tivesse acontecido nada", ele irá escrever em seus diários.
Não obstante a vida pessoal tumultuada (Wittgenstein era homossexual assumido e apaixonou-se, ao menos, por dois alunos), o que me soa mais de interessante entre as confissões e arrependimentos desse filósofo vienense e que influencia sua obra não é tanto o peso de seus sentimentos ao refletir sobre a vida e a alma humana, mas principalmente a visão que se tem do mundo através da linguagem. É por aí que as pessoas se relacionam, principalmente no âmbito afetivo. Homens e mulheres se relacionam mediante uma combinação de símbolos e sinais, mediante jogos de linguagem. Minha tese, invocando Wittgenstein, é de como essas interações podem se dar de forma diferenciada, de acordo com a diversidade de gênero, não por ser uma questão da natureza da diferença (sexos opostos), mas, muito mais por um condicionamento cultural. Se está achando difícil o que estou falando ou uma tremenda bobagem de alguém que ficou doidão, agora explico!
Em primeiro lugar, Wittgenstein faz uma diferença entre símbolos e sinais. Os sínais representam realidades, enquanto que os símbolos são transcendentes.Uma coisa é eu representar com um sinal, dirigindo meu dedo indicador e o médio à boca, indicando que sou fumante ou estou pedindo um cigarro, outro, é alguém encontrar um cigarro depositado num cinzeiro em minha casa e entender que sou fumante.Entendo que as mulheres são muito mais perspicazes em interpretar símbolos, atribuindo novas significações a partir da função que essse símbolos podem ocupar na linguagem (tornam-se sintáticas), enquanto que os homens, ao contrário, só conseguem elaborar as coisas da realidade e interagir com o outro, mediante a apresentação de sinais. É por isso que, nos afetos, é muito mais difícil para um homem interpretar um "não" de uma mulher, se ela não dizer textualmente, do que uma mulher interpretar esse "não" vindo de um homem, a partir da interpretação de um gesto, de uma conduta, de um acontecimento, que tem uma relevância simbólica muito maior para a mulher, do que para o homem.
Wittgenstein afirmava que as pessoas se comunicavam por meio de uma troca de sinais, um jogo de palavras. As palavras são sinais por excelência, mas a linguagem vem carregada de símbolos, que podem sim, ser interpretados durante o processo de comunicação, e serem fundamentais para o desenvolvimento ou desenlace de uma relação.
O que torna as mulheres simbólicas é que elas se atém mais, por sua formação cultural, a interpretar cores, odores e gestos, diferente dos homens que prendem mais sua atenção ao significado das palavras. Talvez isso explique a predisposição maior que os homens tiveram durante séculos a serem poetas, uma vez que as mulheres, dentro do patriarcalismo herdado de uma cultura judaico-cristã, ficavam limitadas à simples leitura de textos ou mesmo ao analfabetismo, para não se ocuparem com o mundo das palavras, mas sim com o mundo dos gestos, onde se tornaram talentosas em artes como a dança ou a própria música (não como compositoras, mas como tocadoras de harpas). Poetisas sempre foram uma rara exceção na história da literatura, e muitas sucumbiram diante dum ostracismo forçado de uma sociedade masculinamente opressora. Já os homens, desde os gregos, privilegiaram sempre as palavras, tornaram-se hábeis no discurso, ágeis políticos, juristas, filósofos e poetas, que se valiam das palavras como um exercício retórico de poder, mas também como uma forma de compreender o mundo.
Talvez pelo fato de terem sido condicionadas a serem mais simbólicas, as mulheres puderam cultivar, afinal, uma característica cara, singular e que acabou por lhe dar em troca da supremacia masculina, um poder maior sobre os homens no momento de interpretar símbolos. Uma mulher é muito mais capaz de interpretar se um homem a deseja ou a repudia, pelo simples gesto dele de perguntar seu telefone, MSN ou ficar com as maçãs do rosto avermelhadas ao vê-la, assim como ela interpreta quando um homem não a quer, quando após uma ou duas saídas, ou mesmo durante todo um relacionamento, ele não liga mais para ela, ou manifesta algum tipo de descaso como vestir-se apressadamente em direção a porta, indicando que está por partir.
Os homens, ao contrário, como são semânticos, necessitam interpretar o significado dos sinais, o sentido das palavras, precisam ouvir um "sim" ou um "não".Não lhes basta o descaso da mulher, interpretado simbolicamente em gestos, mas sim que ela se expresse a ele diretamente, dizendo que o quer ou não o quer mais. Os homens necessitam das palavras, porque no jogo da linguagem de que trata Wittgenstein, eles são cada vez mais dependentes das regras do significado. A regra do "levar um fora", por exemplo, implica que o homem receba, no mínimo, uma carta, um e-mail com o desfecho da relação, ou, ao contrário, quando quer dispensar uma mulher, fazer do mesmo expediente, tão somente mediante a insistência dela de que ele se comunique pela palavra, pois, nessa condição, o homem também tem a interpretação de como a mulher é mais simbólica na interpretação do que está colocado na linguagem; pois ela já saberá de antemão que o cara "pulou fora", sem que ele necessitasse expressamente se manifestar. Canalhice? Não, espírito humano!
Um problema que eu encontro nesse comportamento masculino, mais uma vez recorrendo ao filósofo vienense, é que presos no jogo dos significados das palavras (semântica) os homens tendem a ser cada vez mais solipsistas. Wittgenstein explica o solipsismo ao empreender sua teoria filosófica na psicologia, ao dizer que o solipsismo consiste que, para aquele que se debruça sobre a realidade, nenhuma realidade realmente importa se esta for independente de sua própria consciência. Isso implica em dizer que o ego do indivíduo solipsista é tão cheio de si que ele somente acha que a realidade é apenas aquilo que ele produziu por sua própria linguagem; ou seja, na hora em que o homem "quebra a cara" num relacionamento ao não entender simbolicamente a insatisfação da mulher no meio da relação, acaba por sofrer uma fratura ainda maior em seu ego, que compromete sua estrutura psíquica e sua autoestima, quando, do meio da nada (ao menos para ele), a mulher chega desafiadora e num rompante mais ou menos premeditado, simplesmente diz para o sujeito: "acabou"!!! Os homens constroem um mundo próprio para si a partir das palavras, ignoram gestos, símbolos, manifestações que partem da mulher que podem indicar que ela está sofrendo. Para o homem, enquanto a mulher não reclamar verbalmente, está tudo muito bom!
O problema das relações amorosas, conforme minha tese, à luz do pensamento de Wittgenstein, leva-me a pensar, portanto, que, ao menos no âmbito das interações, o drama profundo dos relacionamentos passa por um problema de comunicação, um problema de linguagem. Como homens e mulheres são intérpretes distintos dentro desse universo complexo que é o de dizer ou não dizer realmente como se traduz o sentimento, faz com que muitos sofram (tantos homens, quanto mulheres) com o inevitável dilema das crises conjugais e relacionais que levam tanto ao fim namoros, noivados ou casamentos. Homens e mulheres não conseguem se comunicar a contento, ou, se conseguem, demonstram uma comunicação precária devido a posicionamentos diferentes dos intérpretes, mediante as regras de linguagem.
Creio que ainda vai levar muito tempo e ainda verei (ou serei) abertamente um ser semântico, que depende de sinais, e da interpretação dos significados que eles me trazem, do que um ser simbólico, como penso que são a maioria das mulheres, que, com sua sabedoria construída após tantos séculos de dominação, conseguem ser bem mais hábeis do que nós(homens) em conduzir dolorosos processos, que poderiam ser bem menos dolorosos se descobríssemos a "mágica" do saber se comunicar. Creio que o estabelecimento de relacionamentos maduros entre homens e mulheres não passa apenas por um amadurecimento individual, mas sim por um amadurecimento de toda a sociedade, se é bem verdade que não temos respostas prontas e acabadas para o problema relacional de ficar ou não ficar com alguém, pois ainda somos escravos do peso de nossos sentimentos, e, a meu ver, sentimento transcende toda a racionalidade que pode ser trazida pela linguagem. Sentimento pode nem sempre ser interpretado bem através de sinais, mas pode sim, muitíssimo, ser compreendido no âmbito dos símbolos. Ao menos essa seria uma primeira resposta ao dilema traçado por minhas amigas, na hora de dispensar seus respectivos namorados, mas não sou nenhum guru da autoajuda, e nem psicólogo com anos de experiência psicanalítica, apenas me dou ao direito de filosofar.
É, desculpem minhas queridas mulheres, mas como homem, vou ficar devendo essa! De qualquer forma, expressando-me semanticamente: um beijo a todas vocês!!
quarta-feira, 3 de março de 2010
POLÍTICA: Quando a democracia é tão enfadonha-Por que amamos os ditadores?
Detesto a Revista Veja. Meu ódio não é de hoje e quem me conhece há mais tempo compartilha junto comigo de uma certa aversão aos editoriais da publicação da dupla de senhores Mário Sabino e Eurípides Alcântara. A revista é uma verdadeira sucursal do diretório nacional do PSDB e um antro do pensamento neoliberal da pior qualidade ( a finada revista República era bem melhor, e tinha, ao menos, uma posição direitista de bom gosto). Entretanto, contraditoriamente, leio a revista, sim; e considero que apesar de todo o lixo publicado, ainda tem aspectos relevantes naquele períodico. Afinal, as críticas que nossos inimigos nos fazem podem ser as piores críticas, mas são críticas.
É por isso que apesar de não gostar, há casos em que sou obrigado a concordar com os jornalistas do prédio da Marginal Pinheiros. Eles metem o pau no governo Lula sem dó, nem piedade, abominam a esquerda e satanizam o MST; mas, seja dita a verdade, para se tomar conhecimento de algumas "mancadas" do atual governo, isso sim, a Veja fornece com propriedade e riqueza de detalhes.
A última "bola fora" do governo, ou, para alguns: azar, foi a visita do presidente Lula a Cuba, com direito a fotos amistosas com os irmãos Castro. Tratava-se, na verdade, de uma relevante viagem de negócios, em prol do comércio internacional, onde o Brasil fecharia negócio com Cuba na reforma do Porto de Mariel, num evento que, certamente, geraria um contrato que agradaria, em muito, as nossas empreiteiras. O problema não foi a viagem em si, mas sim o momento errado, a hora errada. Assim que Lula desembarcou em Havana, já com os opositores do regime cubano devidamente calados e proibidos de se manifestar, eis que no hospital Hermanos Ameijeiras morre o preso político Orlando Zapata, aos 42 anos, após três meses de greve de fome. Não adiantaram os recursos médicos nem a alimentação intravenosa. Zapata faleceu em protesto, devido às más condições carcerárias dos presos políticos cubanos, e se tornou mais uma macabra cifra daqueles que tombam, por cometerem somente "crimes de opinião".
Orlando Zapata era membro do Movimento Alternativa Republicana e do Conselho Nacional de Resistência Civil em Cuba. Um dos vários movimentos da sociedade civil cubano que pede o reconhecimento do pluralismo político, eleições livres, e, enfim, democracia na ilha de Fidel. Era um sujeito que participava de protestos, já tinha sido preso antes, fez outras greves de fome, era um carinha barulhento, mas, segundo seus apoiadores, alguém que nunca se valeu da violência para ser considerado um criminoso comum. A Anistia Internacional já havia intercedido pelo sujeito, e, segundo o movimento dos dissidentes políticos cubanos, estes chegaram a enviar uma carta à embaixada brasileira, antes da chegada de Lula, pedindo para que o presidente brasileiro intercedesse junto a Raul Castro, pedindo não apenas pela saúde de Zapata, mas também por sua libertação, condenado ele a 36 anos de cadeia. O Itamaraty e um aborrecido presidente brasileiro disseram que nada receberam. Ué? Onde está Wally? Quem inventou do cara morrer antes da chegada de Lula? Segundo o próprio presidente, se ele tivesse chegado antes, provavelmente com seu prestigío e magnetismo pessoal, teria feito Orlando voltar a comer.
Restou pra revista Veja, o José Serra, o diretório do PSDB e dos Democratas, e todos os opositores do atual governo brasileiro meteram o pau ( com uma certa razão) na "amarelada" dada pelo presidente, diante da pressão política pela situação dos prisioneiros políticos em Cuba. Como se sabe, o governo brasileiro mantém estreitos laços diplomáticos com a ilha caribenha, desde o fim da ditadura militar, e com um governo de esquerda, capitaneado por um presidente de um partido político autointitulado socialista como o PT, seria natural que as relações diplomáticas com Cuba passassem de uma mera amizade para um verdadeiro caso de amor. Afinal, para cem entre cem ativistas da esquerda militante dos anos sessenta, Cuba era um verdadeiro farol dos povos, a ilha da revolução, o paraíso socialista com saúde, educação e esporte de qualidade, além das belas mulatas, do rum, da salsa e do mambo e das maravilhosas praias ao sol do Caribe. O solo sagrado onde, além de Fidel e seus guerrilheiros, Che Guevara pisou, embalando o sonho de uma geração que combatia ditaduras militares e a injustiça social em todo o continente latino-americano, ao som de Chico Buarque, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Victor Jara e Geraldo Vandré.
"Pra não dizer que não falei das flores", eis que nem tudo são flores hoje na ilha do camarada Fidel. Cuba é, realmente (perdoem-me compañeros) uma ditadura!Ninguém entra nem sai sem passar pelo rigoroso esquema de segurança de um Estado-Policial que fareja contrarrevolucionários em qualquer esquina de Havana. Sobre isso já escrevi detidamente sobre meu apoio e solidariedade à blogueira cubana Yoani Sanchez, em outro post deste blog, criatura corajosa que inclusive acompanho pelo twitter.Sou um cara de esquerda e todos que me conhecem sabem disso, mas não sou mais bobinho! Arrisco, ainda hoje, andar por aí com minha boina ou boné com a estrela vermelha dos revolucionários apenas por uma questão de moda, do que propriamente por ideologia. Não é o "fim da história" como proclamava ( e não proclama mais) Francis Fukuyama, mas também não é a queda do "socialismo real" a la União Soviética ou Muro de Berlim que afundou minhas utopias revolucionárias. Na verdade minha utopia não morreu, apenas mudou de foco, e no meu pensamento esquerdista uma verdadeira revolução só se faz por um processo democrático e não pelo barulho dos fuzis. O problema é que nossa esquerda hoje, e, principalmente, nossos governos de esquerda, ainda trabalham a ilusão de que governos como o dos irmãos Castro em Cuba, ainda são um exemplo de revolução para os povos.
Os intelectuais tem uma certa predileção por ditadores. Os grandes chefes políticos que se impõem pelas armas construíram um ideal mítico cultivado por Maquiavel, no século XVII, numa Florença invadida por César Bórgia, condottieri (chefe militar) admirado pelo pensador italiano.Recentemente, a revista Bravo publicou matéria, acerca da publicação da mais recente biografia de Gabriel Garcia Marquez (Prêmio Nobel de literatura), autor do célebre Cem Anos de Solidão, relatando detalhes da amizade do escritor colombiano com Fidel Castro, assim como a paixão de outros escritores por ditadores. Alguns biógrafos dizem que Hemingway também adorava Fidel, apesar de alguns detratores hoje dizerem que o cara, na verdade, era espião da CIA; e muitos outros pensadores cultivaram seus ídolos na política, como o filósofo Heidegger, membro do partido nazista antes da II Guerra Mundial e admirador de Hitler (pasmem!), ou o poeta Ezra Pound, preso ao final do conflito mundial, por ser declaradamente simpatizante do fascismo e amigo do ditador Benito Mussolini. Até Chico Buarque ainda gosta de Fidel, e Jorge Amado, quando fazia parte do PCB, era fã de Stalin. Vai explicar isso!
Atrevo-me a explicar, e para isso recorro aos gregos. Na verdade, e verdade seja dita, desde a Grécia Antiga os filósofos tinham uma certa aversão à democracia. Aristóteles foi mentor de Alexandre, o Grande. Em Roma, Sêneca foi o principal inspirador e amigo do carrasco Nero e na Antiguidade, a história nos desvenda que a intelectualidade, muito ao contrário do que se pensa, não era um séquito de autores iluminados, embriagados de ideais libertários e democráticos. O Iluminismo inspirou a Revolução Francesa, mas também serviu para espalhar o Terror e o opressor governo de Robespierre, dando-se uma explicação racionalista ao uso da guilhotina. Intelectuais querem mesmo ver os representantes do Antigo Regime no paredón, e se as medidas adotadas por Hugo Chavez na Venezuela, com fechamento de canais de televisão, fossem adotadas no Brasil pra fechar a Revista Veja, eu apoiaria, se além de intelectual eu não fosse um democrata (ao menos fora de sala de aula).
Retornando aos gregos, recordo-me de Platão em A República, onde o citado filósofo grego tinha uma verdadeira aversão, senão um tédio em relação à democracia. Platão não acreditava num governo do povo, com representantes periodicamente e democraticamente eleitos na Ágora, pois achava que isso tudo só levava à bagunça. Quem deveria governar a polis deveriam ser os filósofos, ou então, um rei-filósofo, pois este, em sua sabedoria, saberia o que seria melhor para a cidade. Não existe na filosofia de Platão qualquer menção elogiosa a um governo popular, democraticamente eleito, representante de diversas partes. Na verdade o governo da cidade com suas leis, votadas pelos cidadãos nas assembléias, é somente um mal necessário diante da impossibilidade de se chegar a um governo ideal, a um estado perfeito, governado por um ser com qualidades extraordinárias, até porque se Platão desacreditava da política dos homens, da realpolitik, ele também desacreditava da democracia. A figura mais próxima de um ditador, que Platão demonstrava uma certa admiração era Dionisio de Siracusa, cunhado de Dion, um dos melhores amigos do filósofo. Foi em Siracusa que Platão tentou implementar suas ideias, fugindo de Atenas, mas nem ali foi bem recebido. É, os pensadores em geral são chegados a um bom ditador!
É importante salientar que na Antiguidade, a palavra "ditadura" nem sempre era empregada para designar uma tirania, um governo despótico. Na verdade, os despotismos sucedem às ditaduras e podem até surgir de processos democráticos (Adolf Hitler, na Alemanha, foi eleito para o Parlamento, o Reichtag alemão, antes de se tornar um tirano). Ditadura era uma forma de magistratura antiga (exercício de um cargo público), onde a autoridade revestida desse poder podia conduzir unilateralmente os assuntos da cidade, sobretudo em períodos de guerra, de crise ou de grandes calamidades. Portanto, a figura do ditador simbolizava a imagem do general, do guerreiro, do homem das armas, que carregado do espírito cívico sacrificava sua vida particular em prol dos interesses do Estado, governando como deveria ser aquilo que seria governado. É essa imagem que Fidel carregou ao chegar triunfante em Havana, vindo da Sierra Maestra, encantando milhares de intelectuais de esquerda pelo mundo. É essa imagem ( a do general triunfante) que inunda o imaginário daqueles que acreditam na imagem da política como uma obra divina, onde um messias ou salvador virá profeticamente governar a todos, e não um governo de todos feito por todos. A ditadura é o aspecto metafísico da política.
Por isso que entendo a veneração que muitos ainda tem, em especial o governo brasileiro, pela imagem de Fidel e o respeito a Cuba. Admiro o povo cubano por sua coragem e resistência diante de um desumano embargo promovido pelos Estados Unidos durante anos, assim como demonstro compaixão pelos milhares de cubanos na linha de pobreza, em função da profunda crise econômica que abateu a ilha desde o colapso do bloco soviético. Agora, acredito ser muita "forçação de barra" afirmar, como Raul Castro afirmou, que Orlando Zapata foi mais uma vítima do embargo econômico norte-americano. Pelo amor de Deus! Não venham fazer gozação com meus neurônios! Aposto que quando Lula e sua comitiva saíram do palácio presidencial, o presidente cubano deve ter afirmado pra seus assessores: "morreu mais um criminoso, contrarrevolucionário, bem-feito, quem se matou foi ele e não nós, problema dele!". Na verdade, o problema da ditadura cubana é que seu respaldo político-internacional ainda é dado em virtude desse certo messianismo metafísico de acreditar que os atuais ditadores, ainda são aqueles simpáticos "generais vitoriosos", aclamados pelo povo, chegando num cavalo branco (no caso de Fidel, tanques), após ter liderado um levante popular revolucionário e ter conduzido o povo ao fim de uma tirania. Ora, tiranos que caem são ditadores que aparecem, e Fidel se encaixou perfeitamente nos últimos anos na segunda categoria, governando com mão de ferro, sem oposição e pluralismo político algum, num simulacro de processo eleitoral onde a democracia foi batida pra longe, enquanto Fidel e seus camaradas se eternizavam no poder. Hugo Chavéz tenta o mesmo expediente em Caracas, valendo-se de alterações reiteradas na legislação, e pode muito bem, no futuro, alcançar também a denominação de ditador. Ao contrário, Lula e Uribe, um de esquerda, outro de direita, são, ao seu modo, políticos populistas, massificadores, mas não ditadores, pois apesar do carisma e dos atributos pessoais que os levariam, naturalmente, ao posto de "salvadores" ou "pais" da pátria, estes ainda respeitam o processo democrático, legitimam a alternância de poder e permitem que a oposição se manifeste.
Por falar em democracia, é difícil, quando não insuportável, ter que respeitar, aturar, "engolir" o outro, sobretudo se é o outro que não gostamos. Não suporto a classe média urbana eleitora de Serra, que, por exemplo, manifesta preconceito a Lula por conta de suas origens populares, ou que não suporta ver um governo que tem 73% de aprovação popular, por conta de um bolsa-família, que garante a simpatia e apoio dos mais pobres. Dizem na velha visão liberal-burguesa que se trata de um bolsa-esmola, e que o governo não segue as leis da livre iniciativa capitalista, botando as pessoas pra trabalhar, e sim alimenta vagabundos. Arrghhh! Detesto esse tipo de preconceito! Detesto esse tipo de pessoas! Mas tenho que conviver com elas, pois vivo numa democracia!É por conta dessa democracia que prezo, que vejo coerência nela, no momento em que ela me deixa conviver com tipos insuportáveis de pessoas, mas ao mesmo tempo permite que essas pessoas convivam comigo, e me achem insuportável. Tal abertura é intransponível para um intelectual tradicional, recolhido na sua soberba de só querer lidar com pessoas que ele ache "interessantes". É por isso que os intelectuais se fissuram nos ditadores, pois, como eu já disse antes, o intelectual é meio narcisista, e ele encontra seu Narciso, sua autoimagem, na figura do governante, no perfil do ditador. É por isso que alguns ainda gritam: viva Fideellll!!!! Ainda bem que surgiu Gramsci no meio do caminho, durante o século XX, criando a figura do "intelectual orgânico", aquele que difere do intelectual tradicional, e num processo democrático dentro da luta de classes, pode, por suas simples habilidades, alcançar algum lugar no processo político. Foi isso que aconteceu com Lula, de torneiro-mecânico a presidente. Ele só conseguiu ser presidente graças a uma democracia, e não a uma tomada de armas, como querem ainda hoje os trotskistas. Como intelectual sou ainda um democrata, que fala de Sarte em mesa de bar, mas também conversa sobre o último Grenal com o garçom, ou sobre a novela, com a balconista. Por isso que prefiro outro grito de guerra. Ao invés de "Viva Fidel!", hoje prefiro: "Viva a democracia!". Com tudo de bom e de ruim. Desculpa aí, Fidel!
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