quarta-feira, 3 de março de 2010

POLÍTICA: Quando a democracia é tão enfadonha-Por que amamos os ditadores?

Detesto a Revista Veja. Meu ódio não é de hoje e quem me conhece há mais tempo compartilha junto comigo de uma certa aversão aos editoriais da publicação da dupla de senhores Mário Sabino e Eurípides Alcântara. A revista é uma verdadeira sucursal do diretório nacional do PSDB e um antro do pensamento neoliberal da pior qualidade ( a finada revista República era bem melhor, e tinha, ao menos, uma posição direitista de bom gosto). Entretanto, contraditoriamente, leio a revista, sim; e considero que apesar de todo o lixo publicado, ainda tem aspectos relevantes naquele períodico. Afinal, as críticas que nossos inimigos nos fazem podem ser as piores críticas, mas são críticas.

É por isso que apesar de não gostar, há casos em que sou obrigado a concordar com os jornalistas do prédio da Marginal Pinheiros. Eles metem o pau no governo Lula sem dó, nem piedade, abominam a esquerda e satanizam o MST; mas, seja dita a verdade, para se tomar conhecimento de algumas "mancadas" do atual governo, isso sim, a Veja fornece com propriedade e riqueza de detalhes.

A última "bola fora" do governo, ou, para alguns: azar, foi a visita do presidente Lula a Cuba, com direito a fotos amistosas com os irmãos Castro. Tratava-se, na verdade, de uma relevante viagem de negócios, em prol do comércio internacional, onde o Brasil fecharia negócio com Cuba na reforma do Porto de Mariel, num evento que, certamente, geraria um contrato que agradaria, em muito, as nossas empreiteiras. O problema não foi a viagem em si, mas sim o momento errado, a hora errada. Assim que Lula desembarcou em Havana, já com os opositores do regime cubano devidamente calados e proibidos de se manifestar, eis que no hospital Hermanos Ameijeiras morre o preso político Orlando Zapata, aos 42 anos, após três meses de greve de fome. Não adiantaram os recursos médicos nem a alimentação intravenosa. Zapata faleceu em protesto, devido às más condições carcerárias dos presos políticos cubanos, e se tornou mais uma macabra cifra daqueles que tombam, por cometerem somente "crimes de opinião".

Orlando Zapata era membro do Movimento Alternativa Republicana e do Conselho Nacional de Resistência Civil em Cuba. Um dos vários movimentos da sociedade civil cubano que pede o reconhecimento do pluralismo político, eleições livres, e, enfim, democracia na ilha de Fidel. Era um sujeito que participava de protestos, já tinha sido preso antes, fez outras greves de fome, era um carinha barulhento, mas, segundo seus apoiadores, alguém que nunca se valeu da violência para ser considerado um criminoso comum. A Anistia Internacional já havia intercedido pelo sujeito, e, segundo o movimento dos dissidentes políticos cubanos, estes chegaram a enviar uma carta à embaixada brasileira, antes da chegada de Lula, pedindo para que o presidente brasileiro intercedesse junto a Raul Castro, pedindo não apenas pela saúde de Zapata, mas também por sua libertação, condenado ele a 36 anos de cadeia. O Itamaraty e um aborrecido presidente brasileiro disseram que nada receberam. Ué? Onde está Wally? Quem inventou do cara morrer antes da chegada de Lula? Segundo o próprio presidente, se ele tivesse chegado antes, provavelmente com seu prestigío e magnetismo pessoal, teria feito Orlando voltar a comer.

Restou pra revista Veja, o José Serra, o diretório do PSDB e dos Democratas, e todos os opositores do atual governo brasileiro meteram o pau ( com uma certa razão) na "amarelada" dada pelo presidente, diante da pressão política pela situação dos prisioneiros políticos em Cuba. Como se sabe, o governo brasileiro mantém estreitos laços diplomáticos com a ilha caribenha, desde o fim da ditadura militar, e com um governo de esquerda, capitaneado por um presidente de um partido político autointitulado socialista como o PT, seria natural que as relações diplomáticas com Cuba passassem de uma mera amizade para um verdadeiro caso de amor. Afinal, para cem entre cem ativistas da esquerda militante dos anos sessenta, Cuba era um verdadeiro farol dos povos, a ilha da revolução, o paraíso socialista com saúde, educação e esporte de qualidade, além das belas mulatas, do rum, da salsa e do mambo e das maravilhosas praias ao sol do Caribe. O solo sagrado onde, além de Fidel e seus guerrilheiros, Che Guevara pisou, embalando o sonho de uma geração que combatia ditaduras militares e a injustiça social em todo o continente latino-americano, ao som de Chico Buarque, Mercedes Sosa, Violeta Parra, Victor Jara e Geraldo Vandré.

"Pra não dizer que não falei das flores", eis que nem tudo são flores hoje na ilha do camarada Fidel. Cuba é, realmente (perdoem-me compañeros) uma ditadura!Ninguém entra nem sai sem passar pelo rigoroso esquema de segurança de um Estado-Policial que fareja contrarrevolucionários em qualquer esquina de Havana. Sobre isso já escrevi detidamente sobre meu apoio e solidariedade à blogueira cubana Yoani Sanchez, em outro post deste blog, criatura corajosa que inclusive acompanho pelo twitter.Sou um cara de esquerda e todos que me conhecem sabem disso, mas não sou mais bobinho! Arrisco, ainda hoje, andar por aí com minha boina ou boné com a estrela vermelha dos revolucionários apenas por uma questão de moda, do que propriamente por ideologia. Não é o "fim da história" como proclamava  ( e não proclama mais) Francis Fukuyama, mas também não é a queda do "socialismo real" a la União Soviética ou Muro de Berlim que afundou minhas utopias revolucionárias. Na verdade minha utopia não morreu, apenas mudou de foco, e no meu pensamento esquerdista uma verdadeira revolução só se faz por um processo democrático e não pelo barulho dos fuzis. O problema é que nossa esquerda hoje, e, principalmente, nossos governos de esquerda, ainda trabalham a ilusão de que governos como o dos irmãos Castro em Cuba, ainda são um exemplo de revolução para os povos.

Os intelectuais tem uma certa predileção por ditadores. Os grandes chefes políticos que se impõem pelas armas construíram um ideal mítico cultivado por Maquiavel, no século XVII, numa Florença invadida por César Bórgia, condottieri (chefe militar) admirado pelo pensador italiano.Recentemente, a revista Bravo publicou matéria, acerca da publicação da mais recente biografia de Gabriel Garcia Marquez (Prêmio Nobel de literatura), autor do célebre Cem Anos de Solidão, relatando detalhes da amizade do escritor colombiano com Fidel Castro, assim como a paixão de outros escritores por ditadores. Alguns biógrafos dizem que Hemingway também adorava Fidel, apesar de alguns detratores hoje dizerem que o cara, na verdade, era espião da CIA; e muitos outros pensadores cultivaram seus ídolos na política, como o filósofo Heidegger, membro do partido nazista antes da II Guerra Mundial e admirador de Hitler (pasmem!), ou o poeta Ezra Pound, preso ao final do conflito mundial, por ser declaradamente simpatizante do fascismo e amigo do ditador Benito Mussolini. Até Chico Buarque ainda gosta de Fidel, e Jorge Amado, quando fazia parte do PCB, era fã de Stalin. Vai explicar isso!

Atrevo-me a explicar, e para isso recorro aos gregos. Na verdade, e verdade seja dita, desde a Grécia Antiga os filósofos tinham uma certa aversão à democracia. Aristóteles foi mentor de Alexandre, o Grande. Em Roma, Sêneca foi o principal inspirador e amigo do carrasco Nero e na Antiguidade, a história nos desvenda que a intelectualidade, muito ao contrário do que se pensa, não era um séquito de autores iluminados, embriagados de ideais libertários e democráticos. O Iluminismo inspirou a Revolução Francesa, mas também serviu para espalhar o Terror e o opressor governo de Robespierre, dando-se uma explicação racionalista ao uso da guilhotina. Intelectuais querem mesmo ver os representantes do Antigo Regime no paredón, e se as medidas adotadas por Hugo Chavez na Venezuela, com fechamento de canais de televisão, fossem adotadas no Brasil pra fechar a Revista Veja, eu apoiaria, se além de intelectual eu não fosse um democrata (ao menos fora de sala de aula).

Retornando aos gregos, recordo-me de Platão em A República, onde o citado filósofo grego tinha uma verdadeira aversão, senão um tédio em relação à democracia. Platão não acreditava num governo do povo, com representantes periodicamente e democraticamente eleitos na Ágora, pois achava que isso tudo só levava à bagunça. Quem deveria governar a polis deveriam ser os filósofos, ou então, um rei-filósofo, pois este, em sua sabedoria, saberia o que seria melhor para a cidade. Não existe na filosofia de Platão qualquer menção elogiosa a um governo popular, democraticamente eleito, representante de diversas partes. Na verdade o governo da cidade com suas leis, votadas pelos cidadãos nas assembléias, é somente um mal necessário diante da impossibilidade de se chegar a um governo ideal, a um estado perfeito, governado por um ser com qualidades extraordinárias, até porque se Platão desacreditava da política dos homens, da realpolitik, ele também desacreditava da democracia. A figura mais próxima de um ditador, que Platão demonstrava uma certa admiração era Dionisio de Siracusa, cunhado de Dion, um dos melhores amigos do filósofo. Foi em Siracusa que Platão tentou implementar suas ideias, fugindo de Atenas, mas nem ali foi bem recebido. É, os pensadores em geral são chegados a um bom ditador!

É importante salientar que na Antiguidade, a palavra "ditadura" nem sempre era empregada para designar uma tirania, um governo despótico. Na verdade, os despotismos sucedem às ditaduras e podem até surgir de processos democráticos (Adolf Hitler, na Alemanha, foi eleito para o Parlamento, o Reichtag alemão, antes de se tornar um tirano). Ditadura era uma forma de magistratura antiga (exercício de um cargo público), onde a autoridade revestida desse poder podia conduzir unilateralmente os assuntos da cidade, sobretudo em períodos de guerra, de crise ou de grandes calamidades. Portanto, a figura do ditador simbolizava a imagem do general, do guerreiro, do homem das armas, que carregado do espírito cívico sacrificava sua vida particular em prol dos interesses do Estado, governando como deveria ser aquilo que seria governado. É essa imagem que Fidel carregou ao chegar triunfante em Havana, vindo da Sierra Maestra, encantando milhares de intelectuais de esquerda pelo mundo. É essa imagem ( a do general triunfante) que inunda o imaginário daqueles que acreditam na imagem da política como uma obra divina, onde um messias ou salvador virá profeticamente governar a todos, e não um governo de todos feito por todos. A ditadura é o aspecto metafísico da política.

Por isso que entendo a veneração que muitos ainda tem, em especial o governo brasileiro, pela imagem de Fidel e o respeito a Cuba. Admiro o povo cubano por sua coragem e resistência diante de um desumano embargo promovido pelos Estados Unidos durante anos, assim como demonstro compaixão pelos milhares de cubanos na linha de pobreza, em função da profunda crise econômica que abateu a ilha desde o colapso do bloco soviético. Agora, acredito ser muita "forçação de barra" afirmar, como Raul Castro afirmou, que Orlando Zapata foi mais uma vítima do embargo econômico norte-americano. Pelo amor de Deus! Não venham fazer gozação com meus neurônios! Aposto que quando Lula e sua comitiva saíram do palácio presidencial, o presidente cubano deve ter afirmado pra seus assessores: "morreu mais um criminoso, contrarrevolucionário, bem-feito, quem se matou foi ele e não nós, problema dele!". Na verdade, o problema da ditadura cubana é que seu respaldo político-internacional ainda é dado em virtude desse certo messianismo metafísico de acreditar que os atuais ditadores, ainda são aqueles simpáticos "generais vitoriosos", aclamados pelo povo, chegando num cavalo branco (no caso de Fidel, tanques), após ter liderado um levante popular revolucionário e ter conduzido o povo ao fim de uma tirania. Ora, tiranos que caem são ditadores que aparecem, e Fidel se encaixou perfeitamente nos últimos anos na segunda categoria, governando com mão de ferro, sem oposição e pluralismo político algum, num simulacro de processo eleitoral onde a democracia foi batida pra longe, enquanto Fidel e seus camaradas se eternizavam no poder. Hugo Chavéz tenta o mesmo expediente em Caracas, valendo-se de alterações reiteradas na legislação, e pode muito bem, no futuro, alcançar também a denominação de ditador. Ao contrário, Lula e Uribe, um de esquerda, outro de direita, são, ao seu modo, políticos populistas, massificadores, mas não ditadores, pois apesar do carisma e dos atributos pessoais que os levariam, naturalmente, ao posto de "salvadores" ou "pais" da pátria, estes ainda respeitam o processo democrático, legitimam a alternância de poder e permitem que a oposição se manifeste.

Por falar em democracia, é difícil, quando não insuportável, ter que respeitar, aturar, "engolir" o outro, sobretudo se é o outro que não gostamos. Não suporto a classe média urbana eleitora de Serra, que, por exemplo, manifesta preconceito a Lula por conta de suas origens populares, ou que não suporta ver um governo que tem 73% de aprovação popular, por conta de um bolsa-família, que garante a simpatia e apoio dos mais pobres. Dizem na velha visão liberal-burguesa que se trata de um bolsa-esmola, e que o governo não segue as leis da livre iniciativa capitalista, botando as pessoas pra trabalhar, e sim alimenta vagabundos. Arrghhh! Detesto esse tipo de preconceito! Detesto esse tipo de pessoas! Mas tenho que conviver com elas, pois vivo numa democracia!É por conta dessa democracia que prezo, que vejo coerência nela, no momento em que ela me deixa conviver com tipos insuportáveis de pessoas, mas ao mesmo tempo permite que essas pessoas convivam comigo, e me achem insuportável. Tal abertura é intransponível para um intelectual tradicional, recolhido na sua soberba de só querer lidar com pessoas que ele ache "interessantes". É por isso que os intelectuais se fissuram nos ditadores, pois, como eu já disse antes, o intelectual é meio narcisista, e ele encontra seu Narciso, sua autoimagem, na figura do governante, no perfil do ditador. É por isso que alguns ainda gritam: viva Fideellll!!!! Ainda bem que surgiu Gramsci no meio do caminho, durante o século XX, criando a figura do "intelectual orgânico", aquele que difere do intelectual tradicional, e num processo democrático dentro da luta de classes, pode, por suas simples habilidades, alcançar algum lugar no processo político. Foi isso que aconteceu com Lula, de torneiro-mecânico a presidente. Ele só conseguiu ser presidente graças a uma democracia, e não a uma tomada de armas, como querem ainda hoje os trotskistas. Como intelectual sou ainda um democrata, que fala de Sarte em mesa de bar, mas também conversa sobre o último Grenal com o garçom, ou sobre a novela, com a balconista. Por isso que prefiro outro grito de guerra. Ao invés de "Viva Fidel!", hoje prefiro: "Viva a democracia!". Com tudo de bom e de ruim. Desculpa aí, Fidel!

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