segunda-feira, 15 de março de 2010

CINEMA: O filme "Educação" é bem heideggeriano.

Nick Hornby é o novo Norman Mailer. Se este último foi o expoente da contracultura dos anos 60, Hornby simboliza a  nova geração de escritores da era pós-Beatles. Aos 52 anos, além de publicar vários livros, este escritor inglês descobriu um novo talento: o cinema. Além de suas obras serem transformadas em filmes, ele também virou roteirista e produtor executivo de películas que agradam tanto à crítica quanto ao público.

Foi o caso de Alta Fidelidade (livro que resultou no ótimo filme com John Cusack) ou Febre de Bola (que trata de uma das paixões do escritor: o futebol, através de seu amado time, o Arsenal), e Um Grande Garoto (que também virou filme, com Hugh Grant), além de Como ser Legal, outra obra sua que ainda não foi adaptada para os cinemas. Os livros de Hornby são bons e agradam porque tratam da crônica social londrina de personagens obscessivos que poderiam estar em qualquer lugar, porque gozam das angústias e agruras típicas de quem se encontra dos 20 aos 40 anos. Em todos os livros há um universo repleto de música (que ele adora, como colecionador de discos antigos) e referências pop. Nos últimos anos o escritor vem refinando sua escrita, o que resultou no bom e surpreendente filme Educação.

Educação não é baseado em outro livro de Hornby, mas sim em sua habilidade como roteirista, na adaptação do livro de memórias da jornalista Lynn Barber, onde, desta vez, o personagem é uma mulher e jovem. Apesar de não ser uma ideia original de Hornby, em todo o filme percebe-se a influência do estilo do escritor inglês, na série de referências à musicalidade, o estímulo à transgressão como forma de delimitar a identidade juvenil, e o universo de intelectuais e beatnicks, além dos diálogos inteligentíssimos e engraçados, que são a marca da espirituosidade do autor de Alta Fidelidade.

No filme, a atriz Carey Mulligan, de 26 anos, convence interpretando Jenny, uma garota 10 anos mais nova. Uma adolescente inglesa oriunda de uma working class family, numa Inglaterra do começo dos anos sessenta, quando os Beatles ainda não tinham estourado, que consegue se destacar nos estudos, a fim de conquistar uma tão sonhada vaga na universidade de Oxford. Para isso, ela conta com o esforço e a dedicação vigilante de seu austero, mas amoroso pai (interpretado pelo sempre ótimo Alfred Molina), além do apoio da professora do colégio, que vê em Jenny uma autêntica promessa de sucesso acadêmico. A menina se esforça, desde as aulas de francês(que adora), ciello e latim, enquanto escuta em casa seus discos de Edith Piaf, além de ter uma preferência toda especial por arte (especiamente pelos pintores pré-rafaelistas). É, Jenny não é uma adolescente comum, ou, ao menos, é diferente de suas amigas de escola, por sua inteligência, curiosidade de conhecer o mundo e por aparentar uma maturidade que realmente não tem (em uma passagem do filme, muito bacana, Jenny reconhece a sua professora, que às vezes se sente uma "velha, mas não sábia"). É justamente no caminho dessa menina brilhante que aparece a figura de David (Peter Saarsgard, uma versão mais nova e com cabelo de John Malkovich), um trintão bonitão, bem mais velho que a garota, sedutor, inteligente, com seu carisma aveludado, um belo carro esporte, gosto por vinhos e roupas caras, e um apreço especial por arte, música clássica, viagens e diversão pra valer à noite, com seus amigos tão bon vivants quanto. Enfim: um príncipe encantado!!
Como não poderia deixar de ser, Jenny se encanta com seu "novo namorado" e passa a viver com ele um prematuro ritual de passagem da adolescência para a vida adulta, com todo o ônus e o bônus das difíceis escolhas que alguém que está crescendo acaba por ter que tomar. Transformada numa típica princesinha por David, Jenny torna-se um novo ser, ou na verdade, torna-se alguém que sempre foi o que era, na mudança de visual e nos trajes que a transformam de uma adolescente colegial, para uma típica Audrey Hepburn moderna, com direito a flerte em Paris, e tudo mais que corresponde ao sonho adolescente de toda garota romântica. Sabemos por uma ordem  natural das coisas, pelo andar da carruagem, que uma hora Jenny irá quebrar a cara, o encanto será desfeito, o príncipe encantado mostrará seus defeitos, e ela terá que avaliar o peso de suas escolhas, mas isso eu deixo pra quem quiser assistir o filme.

Na verdade, por sua própria narrativa, pode-se dizer que Educação não seria uma novidade e retoma velhos clichês do gênero, no típico caso das historinhas românticas de "a girl meet a boy", mas não é bem assim. Creio que a indicação para o Oscar deste ano, de melhor atriz para Carey Mulligan (que perdeu pra Sandra Bullock, mas isso já não é novidade) já compensa o fato de ir assistir o filme, pois a atuação de seus personagens é impecável, e o que nos chama atenção no drama de Jenny é a cumplicidade que nos gera, fazendo com que durante todo o filme nós fiquemos na torcida de nossa "heroína", e vibremos com sua "volta por cima"; o que dá todo o sentido do título do filme, quando, chamada a pensar sobre seu futuro com David ou o prosseguimento dos estudos, é que Jenny é chamada à maturidade, para fazer difíceis decisões que talvez ainda não tenha idade para fazer.

Percebo no filme um "quê" da filosofia de Heidegger, sobre seu conceito de amor, que muitos acreditam não estar presente na obra desse filósofo alemão. O dasein amoroso  pode ser encontrado nas entrelinhas de Ser e Tempo, obra máxima do teórico da Floresta Negra, seja em seus estudos sobre Pascal e Agostinho, seja na correspondência que manteve com o amor de sua vida, a também filósofa Hanna Arendt.

O dasein de Heidegger é o "ser-aí", ou "ser-no-mundo"; ou seja, traduzindo para os leigos o ente (nós e tudo, enquanto existência), já chegamos no mundo com certas características transcendentes, dentre elas, a abertura para o amor. Antes de todo e qualquer conhecimento, somos seres capazes de amar, e esse amor é que nos faz ser quem somos. É quando Agostinho fala: "eu te amo-quero que sejas quem tu és!". Foi assim que Heidegger cultivou seu amor por Hannah, que estava fadado a não acontecer, ou a existir somente na distância. Ele era casado e se apaixonou por sua aluna, 17 anos mais jovem, uma "apátrida judia" que se envolveu com o professor, comprometido com o nazismo, numa relação de encanto e desencanto que só o labor filosófico poderia explicar. Apesar de alegar que Hannah foi a paixão de sua vida, é certo que Heidegger, até seus 80 anos, teve várias mulheres (todas alunas), cada vez mais jovens, mas nunca se separou da esposa Elfride, mãe de seus filhos. Entre essa indefinição do ser do amor,  diz Heidegger em uma de suas cartas a sua jovem amante: "Tal como és por inteiro, e tal como irás permanecer, é assim que te amo".

Esse é o dilema amoroso heideggeriano que encontro no filme de Hornby. De um lado, temos David, mais velho, experiente, cheio de si, mas que, na verdade não tem a exata segurança de ser quem é ou de com quem quer estar de fato (por motivos revelados, pra quem assistir o filme); de outro, Jenny, em seu dasein amoroso, na sua abertura para o mundo que lhe diz através do amor quem ela é, e que no meio dessa descoberta, revela-se a si própria as decisões que somente ela poderá fazer. Não se trata apenas de fazer uma opção pela solidão ou pelo convite ao amor eterno, mas sim uma opção por existir, por se tornar um "ser-aí-no mundo".

Para Heidegger, o homem experencia o mundo através de suas paixões. É assim que ele proporciona sua abertura e retraímento para seu próprio existir. A paixão pode abrir e fechar portas, seja sob a forma de amor ou ódio, mas o que mais me impressiona nesse trajeto é uma velha tese a que me apego, e que o filme visto me fez voltar a refletir: amor é aprendizado, e pagando um tributo à experiência, creio que é essa a lição verdadeira que Jenny aprende, e que pessoas como eu também, à medida que vão envelhecendo, também vão aprendendo, e pesam, numa abertura e fechamento heideggerianos, os efeitos de suas escolhas e a repercussão destas para a nossa vida hoje.

Creio que tanto para a personagem Jenny do filme, quanto para outras pessoas que vivem situação semelhante, só tenho mais algo a dizer, a título de testemunho de um certo "bode velho" em determinados assuntos afetivos: na pior das hipóteses, mesmo que seja doloroso, vale à pena quebrar os sapatinhos de cristal, pois ao menos aprendemos que os príncipes (ou princesas) encantados estão apenas no lugar onde devem estar: nos sonhos, e que a verdadeira realeza está em saber existir: a melhor forma de aprendizado, certamente, uma boa educação! Besos a todos!!!

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