Se houver um céu para os cartunistas, ele deve ser todo rabiscado, caótico e cheio dos tipinhos mais engraçados e esquisitos, se forem conforme a forma sacana como Glauco os concebeu. Glauco Villas Boas ( 1957-2010) era um dos melhores cartunistas surgidos no Brasil na fase pós-ditadura. Com seus personagens nas tiras do jornal Folha de São Paulo ou na antológica revista Chiclete com Banana, Glauco fazia, junto com seus companheiros Angeli e Laerte, o trio parada dura do humor gráfico nacional, os los tres amigos da charge brasileira e um dos mais marcantes traços dos anos 80.
É! Em outro artigo neste blog, do ano passado, sobre a morte de Michael Jackson, eu comento que os anos 80 estão começando a morrer aos poucos, não apenas como uma época que não vem mais, mas sim porque seus principais representantes estão morrendo. Só que no caso de Glauco de forma muito mais trágica e violenta: Glauco, aos 53 anos, e seu filho Raoni, de 25, foram brutalmente assassinados, em Osasco, nas proximidades onde Glauco residia desde então com a família e onde, numa descoberta religiosa, tinha fundado uma igreja, onde se dedicava à recuperação de drogaditos. A tragédia maior foi que, de acordo com os relatos da polícia e com as informações que chegam no dia de hoje pela imprensa, tudo indica que o suspeito que disparou os tiros fatais que tomaram a vida de Glauco e de seu filho, foram de um rapaz conhecido das vítimas, um morador da vizinhança, alguém a quem Glauco já tinha tentado ajudar.
Não vou aqui no meu blog me portar como criminólogo (o que também sou) e analisar friamente como acadêmico a morte de Glauco. Não me interessam os motivos, as circunstâncias ou o desenrrolar dos fatos que resultou no triste fim do cartunista brasileiro. O que me interessa é falar como fã, escrever como um assíduo apreciador do humor nacional e de como Glauco, assim como Angeli com seus personagens inesquecíveis (tais como a Rê-Bordosa e o Bob Cuspe) e Laerte, com seus Piratas do Tietê, serviram para alegrar minha vida de adolescente na segunda metade dos anos 80 e como jovem adulto, universitário, no começo dos anos 90. É lembrando disso que chego à tacanha constatação: Glauco faz falta, e como bons humanos imperfeitos que nós somos, nós só nos damos conta disso quando as pessoas partem, quando elas morrem.
Um dos personagens mais icônicos desenhados por Glauco era o Geraldão: um típico porralouca, drogado, peladão e punheteiro, que vivia entupido de seringas, mas, de forma escandalosa, sempre queria ficar mais chapado. Que ironia do destino!! Que coisa mais tétrica! Pois foi justamente um drogado que armado de um revólver tirou a vida daquele que procurou retratar, de forma bem-humorada( se é que isso é possível), o universo da drogadição.
Glauco tinha esse humor irônico de fazer graça de coisas sérias, de tirar a mais risível piada das situações mais escabrosas. No depoimento emocionado de Angeli prestado a rádio UOL, este, mantendo o bom-humor de cartunista, apesar da tristeza, captou bem o espírito do amigo de longa data que agora se foi, dizendo o quanto Glauco inovou o humor nacional no período pós-ditadura, lidando com leveza com temas sérios, fazendo brincadeira com temas políticos espinhosos como a censura e a tortura, sem perder sua genuína inteligência. Eu poderia dizer que, a meu ver, o humor de Glauco assemelhava-se ao humor fino do antológico grupo inglês Monty Phyton, politicamente incorreto, caótico, sacana, despojado, sexista até (para muita gente), mas com uma pitada legítima de genialidade. Inesquecível é a paródia que Glauco fazia dos assédios sexuais em escritório, retratando a secretária Dona Marta, aquela que vivia mostrando os peitos pro chefe ou pro pessoal da repartição, ninfomaníaca assumida, que invertia o jogo sexista da sedução, e, ao invés de ser ela a "comida", era ela a comedora. Através da brincadeira, Glauco inverteu os papéis na sociedade machista de então, e ele mesmo popularizou a revolução sexual e a emancipação da mulher, através de uma personagem "devoradora de homens".
As charges políticas então, que vocês podem ver aqui neste blog, retratando desde a era Sarney, até o governo Itamar e FHC são impagáveis, imperdíveis, um verdadeiro documento histórico do período. A realidade social, os principais problemas nacionais, os dramas humanos vividos pela classe trabalhadora e pelos excluídos, o descaso das elites, o desmatamento ambiental, as guerras, está tudo ali nos desenhos de Glauco; tudo ali, de forma despojada, no traço simples mais originalíssimo desse chargista paranaense, mas de alma paulista, que desde cedo começou a inventar o seu traço característico, mas só no final dos anos 70 conseguiu, com muita picardia, compor uma leva de novos cartunistas brasileiros que revolucionou o humor nacional do fin de siècle. Glauco Villas Boas é referência obrigatória para quem quer conhecer e entender de humor, e alguém que faz muita falta mesmo, em tempos boquirrotos, onde o marasmo e o mau-humor neoliberal querem dar as caras novamente, em tempos de eleição.
É, estou triste! O mundo sempre perde mais a graça quando morre alguém bem-humorado! Esteja em paz, Glauco!
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