O presidente norte-americano Barack Obama conseguiu uma inesquecível vitória histórica na semana passada, quando, após mais de 50 anos de enrrolação, finalmente foi aprovado um plano nacional de saúde pública nos EUA. Uma espécie de "SUS yankee".
No bom documentário Sicko-S.O.S. Saúde, o cineasta Michel Moore já tinha demonstrado o caos do sistema de saúde norte-americano, demonstrando que, no final das contas, na lógica capitalista de mercado, quem não tem dinheiro pra pagar, não tem médico. Quem reclama aqui no Brasil de nossos hospitais públicos sempre lotados, faltando leitos e repletos de doentes, espalhados pelo corredor, ao ver o filme de Moore deve dar graças a Deus de pobre ainda ter acesso a isso; pois na Terra do Tio Sam, do american way of life, se o indivíduo estrebuchar muito, acaba saindo do hospital direto pra cadeia, por perturbar a law and order, ao querer um tratamento médico minimamente humano e decente.
A própria máe de Obama, Ann Durham, no seu combate contra o câncer, foi vítima desse sistema. A mulher passou anos, enquanto seu jovem filho mestiço Barack formava-se em direito( preparando-se para ser o líder mundial que agora é), questionando os preços extorsivos e abusivos dos seguros de plano de saúde nos EUA, acabando por perder a vida ao recorrer a um deles. A discussão passa pelo velha tema do fetichismo do mercado, da lógica capitalista em querer transformar tudo em mercadoria, por um velho racionalismo contratualista "a la Denis Rosenfield" , tão enraizado pelo pensamento jurídico positivista, e da manjada sacanagem de transformar a vida e a saúde humana em negócio. Sim, estou falando dos famigerados planos de saúde!!
Ainda sou servidor público(digo, ainda, porque estou doido pra cair fora, mais dia ou menos dia, do setor onde trabalho ou virei a trabalhar, pois quero mudar de ramo), e na qualidade de funcionário público, tenho descontado todos os meses um valor específico (e gordo) destinado à pagar à previdência e a saúde publica do Estado. Poderia eu utilizar da parafernália de médicos, enfermeiras, leitos e fármacos que estão pelo Estado a minha disposição; mas, não! Assim que entrei no serviço público minha zelosa mãe logo me intimou:"Meu filho! Faça um plano de saúde! Você não sabe o dia de amanhã. Não pode confiar na saúde do Estado e não tem sequer um leito em quarto particular". Ok,ok! Acabei cedendo aos apelos de minha amada mãezinha e feito o bendito do plano (um Unimed, que até hoje, não me dá lucro, nem prejuízo, mas não façamos merchandising sem necessidade, até porque eles não me pagariam nada por isso!). Agora, não deixo de pensar a ironia do destino: quando meu pai enfartou, foi num hospital público que foram prestados os primeiros socorros, foi lá que ele foi reanimado e lá onde permaneceu seus 5 dos 10 dias de UTI. Sou grato à equipe de profissionais do Hospital Estadual Walfredo Gurgel em Natal/RN. Se não fosse por eles (e Deus, em primeiro lugar) hoje eu seria orfão de pai. Longa vida à saúde pública do Brasil! Longa vida ao SUS!
É quando percebo o dilema norte-americano é que vejo o quanto "santo de casa não faz milagre" e da quantidade de discursos demagógicos que temos que ouvir na época das campanhas eleitorais, como se a saúde pública no Brasil fosse o nono círculo do inferno. Temos um certo governador de Estado e candidato à presidência que foi Ministro da Saúde, e não obstante sua elogiada gestão dentro do ministério no período do presidente que antecedeu a Lula, não vejo hoje ele dizendo nada acerca das maiores precariedades de nosso sistema, a não ser de combater o fumo, para ele: a maior e mais suprema fonte dos males. Se aqui nos vemos às voltas com o antitabagismo e as campanhas para evitar que nossos hospitais fiquem repletos de doentes com câncer de pulmão, digo que nos Estados Unidos a situação é bem pior, pois sequer 65 milhões de norte-americanos tem acesso a um médico de plantão.
O sistema norte-americano é mesquinho, pois deposita toda a responsabilidade dos estados-membros da federação americana à iniciativa do próprio doente. Deve ele, em termos preventivos, ao ingressar no mercado de trabalho, adotar um plano-empresa de serviços de saúde, que lhe garanta, nos termos da legislação trabalhista em vigor, o direito à assistência médica, tanto para ele, quanto para seus familiares. O que nem preciso dizer é o quanto isso gera um lucro grande para as seguradoras de saúde, no momento em que firmam convênios com as empresas privadas contratantes de mão-de-obra. O que os planos fazem lá, então, assemelha-se ao que é feito aqui no Brasil e na América Latina: quanto melhor o serviço, maiores as especialidades médicas e a quantidade de profissionais disponíveis, mais caro é o plano. É a lógica da livre concorrência do liberalismo clássico, que move o american healthy.
Mas eu pergunto uma coisa: e aqueles que não tem emprego ou não tem condições de pagar por um bom plano de saúde, como é que ficam? A política "assistencial" norte-americana prevê em sua legislação que no caso dos comprovadamente pobres (leia-se "miseráveis") e daqueles que não tem recursos para se manter, a lei prevê atendimento em caráter de urgência em qualquer canto dos Estados Unidos. Isto implica em dizer que se um pobre levar um tiro o hospital é obrigado a atender, mas não tem a obrigação de custear o tratamento do doente, tão logo ele se recupere do estado de emergência, se não tiver um plano de saúde. O que a reforma para o sistema de saúde de Obama propôs é que ao invés de somente aqueles que tem grana terem a oportunidade de ver custeadas suas despesas com saúde, mediante à adesão a planos privados, o Estado também proporciona à adesão dessas pessoas, a custos simbólicos, subsidiados pelo governo, que permitem que elas não estejam à margem do atendimento de serviços de saúde no país. Isso, na prática, universaliza o atendimento médico em todo o solo norte-americano, evitando que qualquer pessoa fique de fora do sistema. Socialismo? Não. Estado Social mais forte.
O que dá dor de cabeça e tira o sono dos opositores de Obama (membros do partido republicano, lobbystas dos seguros privados de saúde, e próprios integrantes do partido do cara) é que as medidas adotadas pelo presidente americano e aprovadas a fórceps pelo Congresso, reinventam o velho fantasma do intervencionismo estatal a cair sobre a "libertária mão invisível do mercado". Em uma palavra: socialismo. Tá certo que pensadores de lá autenticamente socialistas como Noam Chomsky, até podem perder os cabelos em explicar pra uma turba de parvos que o que Obama fez foi mero assistencialismo, e não a reprodução do programa de saúde de Fidel; mas a discussão está em outro nível ideológico, em outra frente: o que se questiona é a indiscutível necessidade do Estado (nem que seja como mera agência reguladora), diante de uma economia de mercado. É! Os magnatas de Wall Street parece que ainda não aprenderam com a crise econômica do ano passado.
Neste momento, distintos promotores de justiça e procuradores norte-americanos de vários estados do USA estão elaborando peças jurídicas, entrando com ações judiciais, tentando anular a lei hoje sancionada por Obama da reforma da saúde, alegando sua inconstitucionalidade. Não estão eles movidos por um mesquinho sentimento de ir de encontro a uma nobre iniciativa altruísta de promover saúde para todos, mas sim o que eles questionam é o velho embate filosófico entre regime de liberdades X intervenção do Estado, que marcou o cerne das disputas ideológicas durante toda a modernidade, quando alegam que a lei aprovada vai de encontro à décima emenda da Constituição Americana, do tempo de George Washington, que prevê à liberdade de comércio. O negócio é que os promotores da Flórida e Carolina do Sul não engoliram bem o fato de que a legislação aprovada prevê pena de multa pra quem não aderir a um plano. Faz até sentido, se eu compartilhasse do pensamento liberal.
O sistema de saúde para os mais pobres é visto sob uma certa ótica calvinista de uma ética protestante que vê o assistencialismo estatal como mera caridade, uma concessão aos "coitados" ,outsiders, que não conseguiram se adequar ao sistema. O capitalismo produz sua vilania quando, em prol de uma suposta "liberdade" de mercado, deixa milhões sem ter acesso a médicos e medicamentos, tão e simplemsente por entender que se trata de um detalhe contratual. Para os mais pobres na terra de Obama, só restava o Medicare, um serviço de saúde gratuito, bancado por iniciativa de movimentos sociais em convênio com o governo, que sequer atingiam 1/3 da população. Numa América Latina Católica, não estamos tão acostumados com tanta frieza técnica, porque o paternalismo do Estado vinculado à Igreja, durante muitos anos, fez desenvolver a filosofia de um Estado protetor dos mais fracos, mas sempre com a lógica:"os curativos são para eles, mas o médico sou em quem pago". Em função disso eu até entendo os apelos de minha querida mãe (e de todas as mães zelosas de nosso Brasil varonil) de que eu fizesse (pelo meu perfil de classe média) um plano privado.
Entendo que o abacaxi enfrentado por Obama na área de saúde lá nos States revela-se também aqui na atual campanha presidencial, quando os candidatos dos dois partidos majoritários muito parecidos vão apresentar projetos políticos distintos, bem relacionados com a dicotomia acima apresentada de mais Estado X menos Estado. Não sei até que ponto por aqui o discurso liberal triunfará, quando lá nos EUA, no berço do liberalismo, o papo já está sendo outro com as reformas promovidas pelo "socialista" Obama. Sei que gostaria muito de não ter que gastar meus parcos trocados com um plano de saúde que não uso, no momento em que ao sentir os sintomas de uma fritura mal deglutida, eu pudesse saber que bastava confiar no posto da prefeitura da esquina, ao invés de meu banheiro, sem a necessidade de um quarto individual, numa saúde pública efetivamente de todos. Sorry, mamãe!!!
Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
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