Um blog em forma de almanaque, com comentários sobre cultura, política, economia, esporte, direito, história, religião, quadrinhos, a vida do próximo, o que você desejar, ou que os seus olhos se permitam a ler e comentar, contribuindo para as reflexões desse humilde missivista, neófito nos mares internaúticos, em meio a esta paranoia moderna.
sábado, 28 de fevereiro de 2009
ESSE BALAIO GIGANTE CHAMADO PMDB
O PMDB é um partido engraçado. É a agremiação político-partidária nacional que a imprensa já atribuiu um sem número de significados. Desde "partido ônibus", "Centrão", "partido-noiva", simplesmente "monstro", e quantos adjetivos você quiser atribuir à tradicional legenda, oriunda do antigo MDB.
Vamos refrescar a memória! O Movimento Democrático Brasileiro foi parido pelo golpe militar de 64 após a estupenda machadada contra a democracia, a liberdade e os direitos fundamentais, que foi o AI-5 (Ato Institucional número 5), dissolvendo os partidos políticos existentes até então e toda a estrutura política-social que se firmava no país, até os militares obrigarem a nação a bater continência e entrar em ordem unida, perante o novo governo da turma de farda. Com a permanência no sistema político de apenas dois partidos: a governista ARENA e o oposicionista MDB, só restou a todos os demais grupos e militantes políticos, contrários à ditadura ou não agraciados pelos generais, migrar para uma legenda fabricada por decreto, que tinha tudo pra ser apenas uma mera figura decorativa num cenário político ditatorial, totalitário e de repressão ferrenha à liberdade de pensamento e de associação.
Contudo, o MDB cresceu e apareceu. Sob a batuta de políticos como Franco Montoro, Mário Covas e Ulysses Guimarães, na década de setenta a agremiação conseguiu obter algumas pequenas vitórias, dentro dos limites e de um surreal quadro possível de atuação política, dentro de um parlamento amordaçado, juízes amedrontados e promotores revoltados, diante de abusos e mais abusos da chamada "linha dura" do Exército, nos chamados "anos de chumbo" da ditadura militar. Estávamos nos primórdios da década de 70, e antes que a calça boca de sino desaparecesse da moda, a comemoração da vitória da Copa tivesse terminado, as discotecas chegassem e o comercial da pilha Rayovac fosse o mais visto, o pau comia solto, a cipoada era grande em torno de estudantes, artistas e intelectuais, a tortura com choques elétricos e pau-de-arara transformara-se num monótono expediente de repartição, e Lula e seus companheiros de sindicato nem sonhavam ainda em fazer greve entre os metalúrgicos do ABC paulista. Ficou antológica a candidatura extraoficial de Ulysses à presidência da república em 1974, mesmo sabendo que, pela Constituição da época, era impossível se candidatar, tendo em vista as cartas marcadas do colégio eleitoral, num país onde inexistia democracia. Era o anti-candidato, contra os "gorilas fardados" que estavam na selva de pedra, abatendo a tiros os Tarzans comunistas que se atreviam por gritar pela volta da democracia e da liberdade.
Agora, vemos em 2009 a volta do PMDB à cena política com todas as forças, voltando a dominar o parlamento, tanto na liderança da câmara com Michel Temer, quanto no senado, com José Sarney. É a volta do propalado "Centrão" de anos atrás, dizem alguns. Pra quem não é da época, esteve em Marte nos últimos 20 anos, ou nunca ouviu falar no termo, "Centrão" era o termo empregado pela velha "Nova República" para definir o grupo político majoritário que dava as cartas no Congresso Nacional, após a redemocratização, sendo responsável por todo nível de articulações políticas, conchavos e maracutaias que propiciavam o exercício do poder. Era um grupo formado por políticos sem muita afinidade ideológica ( ou seja, ora à direita, ora à esquerda), muito mais interessados em seus interesses particulares e corporativos, que poderiam tanto ficar em cima de muro, quanto apoiar uma proposta progressista de um grupo A, quanto outra proposta reaçonária de um grupo B, desde que isso resvalasse na consecução de seus interesses. O PMDB incorporou como ninguém esse apelido de "Centrão", tendo em vista que sua base política sempre foi uma colcha de retalhos, cabendo de tudo, desde arautos da democracia e combatentes da ditadura como Ulysses Guimarães, até espertalhões populistas e metidos até o pescoço com escândalos de corrupção e enriquecimento ilícito, como Orestes Quércia em São Paulo, Newton Cardoso em Minas Gerais e Antony Garotinho no Rio de Janeiro.
Com o ressurgimento do PMDB como grande força política nacional (na verdade, já era, porém uma força estilhaçada), não demorou para que o ex-governador de Pernambuco, Jarbas Vasconcelos, dissesse o óbvio: sim, o PMDB afunda na lama da corrupção, seus postulantes são todos interesseiros, interessados tão somente na disputa de cargos e o que vale mesmo para o partido é o poder, seja como for, mas tão e intensamente o poder, mesmo que pela porta dos fundos. Com a reforma partidária de 1979 e a volta da democracia na década de 80, o antigo MDB virou PMDB. Do que sobrou do partido histórico da década de 70 foi apenas o discurso de democratização mobilizado nas campanhas da Diretas Já, a formação de uma nova Assembléia Nacional Constituinte que gerou a atual Constituição de 1988, e o slogan da "Nova República", que o partido do velho Ulysses pretendia criar após a redemocratização, com Tancredo Neves na presidência. Quem ainda recorda dos livros de história sabe que, no último caso, o projeto dos pemedebistas babou!
O PMDB é uma pérola, uma jóia de originalidade no cenário político brasileiro, pela sua astúcia de ser o eterno postulante ao cargo maior da presidência, sem nunca o querer ter. Na verdade o PMDB é um partido parlamentarista por excelência, vide que nunca assumiu a chefia do Executivo federal de verdade. Depois que Tancredo bateu as botas, e um hesitante Sarney na fase do Plano Cruzado via-se às voltas com gado escondido nos pastos, pelo boicote dos fazendeiros e o ágio no preço da carne, uma desastrosa ocupação da siderúrgica de Volta Redonda pelo exército, durante uma paralisação de grevistas, que resultou na morte de operários, e tudo isso em meio a uma inflação galopante, o PMDB se viu na necessidade de não perder o bonde da história, se aliando a tudo o que é governo, seja ele qual fosse, numa estratégia que enfatizava muito mais a barganha com o poder, do que a conquista desse poder. Isso resultou no grande cisma que quase produziu a extinção do partido, no momento que seus notáveis na política paulista, pemedebistas históricos como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas e José Serra pularam fora do barco, abandonando a nau aos ratos, à mercê de Orestes Quércia e sua trupe, formando uma nova sigla partidária: o Partido da Social Democracia Brasileiro (PSDB, ou simplesmente tucanos) . Na debandada, depois os tucanos foram acompanhados de Aécio Neves, neto de Tancredo e ex-porta-voz da presidência, que hoje, como sabemos, iniciou meteórica carreira política nas Minas Gerais, tornando-se governador do Estado e hoje, é um dos postulantes do PSDB na sucessão de Lula, ao posto máximo do Palácio do Planalto.
O PMDB nunca elege um presidente pela legenda porque, na verdade, não precisa. Em seu parlamentarismo oficioso "à brasileira", as velhas raposas pemedebistas sempre estiveram no topo, movendo as peças do tabuleiro no xadrez político dos jogos de poder. Com a quantidade imensa de prefeitos e vereadores, do Oiapoque ao Chuí, formando exércitos de acochados, em milhares de currais e redutos eleitorais, o PMDB soube como ninguém posar de progressista quando não era progressista, ou aparecer como conservador, sem nunca ter sido conservador. Suas diferentes facções seja à esquerda, ou direita, ou se preferir, jogando dos dois lados, sempre constituíram o DNA político da legenda como partido da situação e da oposição vigente, tudo ao mesmo tempo. Quem acompanha as peripércias de nossos deputados nos bastidores de Brasília, sabe indicar nos dedos quem é a turma que aparece como petista dentro do partido, e aqueles cujos narizes ostentam aduncamente seus atributos tucanos. Se fosse no futebol, Michel Temer seria o típico líbero, aquele que você pode colocar até como goleiro, jogando em qualquer posição, cobrando os pênaltis de cada escândalo de corrupção de seus partidários, com um detalhe: você pode colocar ele pra jogar tanto no seu gol, quanto no gol adversário.
O PMDB não é partido de líderes carismáticos e centralizadores, como um PT com seu Lula da Silva, um PDT com seu finado Brizola ou até mesmo um PC do B, à sombra do fantasma de seu lendário líder morto, João Amazonas. O partido é uma confraria de interesses, um imenso agrupamento de corporações, um consórcio de interesses econômicos, políticos e privados de seus grupos internos. Um balaio de gatos onde quem canta de galo acaba por se ver sozinho, voltando cabisbaixo como um pinto molhado de volta para a casca do ovo. Que o diga Antony Garotinho, quem diria, o típico político espertalhão, o Romário da política fluminense, o "estuprador das esquerdas" no dizer de um indignado Brizola, que tentou impor sua candidatura pela segunda vez àquela agremiação política, fazendo até greve de fome, num episódio hilariante que não serviu para engordar seu capital eleitoral, e nem para emagrecer sua rechonchuda silhueta. Na época, a malandragem do garotinho custou caro, e a esperteza dos adultos prevaleceu, num puxão de orelha que resultou na saída do partido do ex-governador do Rio de Janeiro, pois para o PMDB, política não é brincadeira de garotinhos. Se anos antes o PMDB deixou a embarcação de Ulysses à deriva, nos 4% que resultou de sua pífia atuação eleitoral na polarizada eleição de 89 entre Collor e Lula, quanto mais ceder apoio da legenda a um neófito como Garotinho.
Eis que isso é o PMDB! Um retrato da realidade brasileira. O retrato pronto e acabado de seus políticos e das velhas formas de fazer política. Uma política preguiçosa, sem proposta de renovação ou transformação social nenhuma, mas tal como comida de hospital, algo que não escolheríamos e nem comeríamos, mas quando menos esperamos nos desce goela abaixo!
Não podemos esquecer do clã Sarney. Na verdade, o PMDB é um partido tão multifacetado, que conseguiu em seu interior agrupar as velhas oligarquias e clãs que dominavam a política do Nordeste, num coronelismo pop travestido de democrático, agrupando famílias que há decadas consomem nacos do poder na administração pública de estados nordestinos, transformando-os em verdadeiros feudos, suseranias onde a vassalagem dos súditos revela-se no clientelismo na distribução de cargos, no fisiologismo e nepotismo na acomodação de parentes, amigos e aliados em cargos do serviço público, contratos com lícitações fraudulentas ou privilegiadas, e um intenso jogo de "cartas marcadas", onde o interesse privado é de mais, e o interesse público é o de menos ou quase inexistente. Assim, o PMDB agrupou em seu berço as grandes famílias, como os Alves no Rio Grande do Norte (não sou parente deles, apesar de meu sobrenome), os Sarney no Amapá, outrora os Cunha Lima na Paraíba, assim como antigamente os Jereissatti, no Ceará, o grupo de Mão Santa no Piauí, e muitos outros grupelhos familiares espalhados em prefeituras e mais prefeituras dos cafundós do país. Sarney, ex-integrante da ARENA e de seu genérico, o antigo PDS, e vice na chapa de Tancredo, face uma composição com os militares, ao sair da presidência e posteriormente retornar à vida pública, abraçou a legenda de seus antigos adversários como seu novo lar. Pelo PMDB Sarney conseguiu o improvável, que foi burlar a lei eleitoral em sua época, elegendo-se senador pelo inexpressivo estado do Amapá, enquanto seus parentes conduziam a máquina política no Maranhão, e de lambuja presidiu o senado, gerando uma tradição de que ele, enquanto estivesse vivo, seria sempre o virtual ocupante da cadeira, sempre que as disputas políticas do senado, levassem o PMDB a indicar alguém para o controle da casa.
É bem verdade que é chato, e até mesmo ofensivo à democracia, ver que depois de tantos conchavos, alianças e jogos de interesses, o PMDB volta com tudo no cenário político, abocanhando de novo pedaços preciosos do poder, comandando novamente as duas casas do Congresso Nacional. Os caras praticamente hoje tornaram-se donos do parlamento, com direito à demarcação de terra e fixação de placa. Fica um gosto de laranja chupada pela segunda vez, após ter sido guardada na geladeira, ter que aguentar de novo (no, no, not again!) o Sr. Michel Temer com sua fala mansa de curió paulista, agindo como aquele zelador de prédio, que vê toda manhã o "Ricardão" sair mais cedo do prédio da patroa, e dizer que não viu absolutamente nada, diante do atônito marido preocupado, diante do rastro de cuecas estranhas e camisinhas jogadas pela janela ou pelo corredor do condomínio. Ou então ver o Sr. José Sarney, eterno"imortal" da egrégia Academia Brasileira de Letras, e também mitológico caudilho maranhense, a espraiar as tintas de sua caneta não apenas em seus contos da prosa telúrica do Nordeste, mas também para assinar a autorização para tramitação de projetos, com liberação de verbas para empreiteiras, destinação de recursos para a educação ou merenda escolar de seu estado, que nunca chegarão à boca de suas esfomeadas, esquálidas e desnudas crianças, das casas de taipa de Imperatriz ou Bacabal. Ver esses dois senhores novamente no comando do Congresso, é como ver a reprise daquele filme de sessão da tarde, pela enésima ducentésima vez, justamente na hora da fila do banco ou do dentista, sem ter nem um jornal ou revista Caras pra ler. Não dá, nem tem o maior tesão! Nesse caso: "Não vale a pena ver de novo"!
É o encontro do velho com o novo no eterno paradoxo da "Nova República". E eu que pensava que a república nova tinha começado de fato quando um ex-metalúrgico sindicalista tinha, por um partido de esquerda, chegado à presidência. Na lógica de aliancismos do governo de hoje, do alto de sua popularidade, em nome da tal governabilidade, vale para o governo conceder o Poder Legislativo inteiro a um partido, cujos integrantes tem tanta veracidade e tanta integridade de intenções quanto uma nota de três reais. Vão me dizer que o PMDB ainda tem pessoas distintas, administradores competentes e políticos sérios, de reputação ilibada, como um José Fogaça ou um Pedro Simon no Rio Grande do Sul, porém, eu retruco não falando mal e em particular de quesitos individuais deste ou outro personagem público ( a imprensa e a opinião pública já fazem isso direto), mas sim de um projeto político global que é representado pelo PMDB hoje. O PMDB em seu aliancismo a todo custo, tira da política tudo o que lhe restava de iniciativa militante pela mudança, de busca da transformação social ou, ao menos, de crítica a velhas formas de exercício do poder. O PMDB tira o tesão da política para aqueles que ainda consideravam que, mesmo tendo morrido o sonho da revolução de que tratava John Lennon, ainda fosse possível por passos minguados, fazer uma república ou trazer um novo Brasil mais atraente socialmente e menos feio que o nosso para as novas gerações. Com o retorno da velha guarda pemedebista à posse das chaves do portão de nossa democracia, só nos resta esperar quando é que alguma novidade vai aparecer nas ondas do rádio, pois nessa frequência, só escuto música repetida.
É, Doutor Ulysses! A exemplo do personagem homônimo, da Odisséia de Homero, foi bem melhor ficares no fundo do mar, junto às sereias, do que retornar a Ítaca para conviver com as górgonas, as medusas da política nacional! Quem saca literatura sabe do que estou falando!http://noticias.uol.com.br/ultnot/multi/2009/03/01/0402356CD0897326.jhtm?pmdb-e-zona-de-indistincao-de-psdb-e-pt-0402356CD0897326
terça-feira, 24 de fevereiro de 2009
PORQUE A CERIMÔNIA DO OSCAR FICOU MAIS INTERESSANTE?
Um exemplo é a premiação este ano do excelente longa-metragem de Danny Boyle (diretor de cinema britânico, que estreiou no circuito internacional com o filme escocês Trainspotting, de 1996), chamado "Quem quer ser milionário"(Slumdog Millionaire). Assim como o filme Babel, de 2006, do diretor mexicano Alejandro Gomez Iñarritu, o filme de Boyle é um típico exemplo de obra cujo roteiro explora o tema da globalização. No caso, o filme se passa na India, com atores indianos, dirigido por um cineasta inglês, e que trata de um tema que envolve todos os seres humanos hoje, numa sociedade globalizada, ou seja: pobreza, ascensão social, programas de big brother e o advento da cultura de massa com a febre televisiva. O título do filme refere-se ao mesmo nome de programa popular de auditório, muito conhecido nos canais da Europa, baseado em perguntas e respostas, que testam o conhecimento de seus candidatos, até um deles atingir pontuação suficiente para obter o prêmio máximo, que pode ser estimado em milhões de euros (quem não se recorda do "Show do Milhão", de Silvio Santos, no SBT?). No filme de Boyle, o protagonista, um jovem indiano de uma favela de Mumbai, decide participar do programa, no velho enredo envolvente e nunca exaustivo da superação social. Sem cair em pieguismos, ou caricaturização da pobreza, Danny Boyle (cineasta oriundo do cinema independente) consegue fazer uma película sensível, interessante, original, e que amealhou, mundialmente, todos os prêmios artísticos relevantes, entre críticos e aficcionados de cinema nos últimos meses, tendo em seu apogeu arrebatado, nada mais nada menos, que 8 estatuetas do Oscar, na premiação do domingo passado; inclusive a de melhor filme e de melhor diretor.
Mas se a cerimônia de 2009 foi a consagração de Boyle, não se deixou de verificar a nova postura adotada pelos membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Los Angeles(responsável pelas indicações e premiações), acerca dos vencedores. O próprio Boyle, cineasta de estilo que passa longe do chamado mainstream hollywoodiano, em seu discurso de premiação, exortou o papel do cinema independente no mundo, esnobando indiretamente o poder das grandes corporações da industria cinematográfica, com seus produtos pasteurizados: filmes blockbusters, destinados a fazer bilheteria de mais e fazer pensar de menos, ao sabor dos humores dos executivos engravatados dos grandes estúdios. O lendário cineasta brasileiro Glauber Rocha, se estivesse vivo, talvez aplaudisse de pé.
O Oscar deixou também de ser uma cerimônia que só privilegiasse a "prata da casa", ou seja, atores e atrizes norte-americanos, em filmes tão somente falados em inglês. A tendência de globalização do prêmio foi se revelando, em recentes premiações passadas, quando em mais de 60 anos de academia, um ator de nacionalidade estrangeira foi premiado com a categoria principal de melhor ator. No caso do italiano Roberto Benigni, pelo filme "A vida é bela" (vencedor em 1998, em outro feito notável: a premiacao de melhor filme estrangeiro, de uma película falada em italiano, que se tratava, na verdade, de uma comedia dramática), até chegar ao espanhol Javier Bardem (premiado no ano passado pelo filme "Onde os Fracos Nao Tem Vez": outra homenagem ao cinema independente, tendo em vista que os irmaos Cohen, diretores do filme e também oriundos da cena independente, receberam o Oscar de melhor direção). Para as mulheres, o Oscar também reconheceu o talento de atrizes estrangeiras, ao conceder o Oscar do ano passado, de melhor atriz, para a francesa Marion Contillard, por sua atuação espetacular no excelente e comovente "Piaf-um Hino ao Amor"(por sinal, falado em francês). Claro que antes, outra francesa havia arrebatado o prêmio de melhor atriz coadjuvante. Feito realizado por Juliette Binoche, no filme do diretor Antony Mingella: "O Paciente Inglês", em 1997. Só que aí o filme e a atriz falavam em inglês. Desta vez, em 2009, foi a vez da atriz espanhola Penélope Cruz (musa do cineasta espanhol Pedro Almodóvar) receber o prêmio de melhor atriz coadjuvante, no filme bilingue de Woody Allen: Vicky, Cristina, Barcelona, onde interpreta sua personagem falando, a maior parte do tempo, em seu idioma nativo. Não podemos, é claro, esquecer de prestigiar o cinema latino-americano, cada vez mais em franca expansão, visto a indicação, para o orgulho nacional, da atriz brasileira Fernanda Montenegro em 1999, para a categoria principal do prêmio de melhor atriz, concorrendo com outras feras como Merryl Strep e Cate Blanclett, no antológico filme de Walter Salles, "Central do Brasil", tornando-se, na história da cerimônia, a primeira atriz brasileira a concorrer ao prêmio. Antes de Fernanda, somente outra atriz sul-americana havia concorrido ao prêmio de melhor atriz, caso da argentina Norma Aleandro, indicada em 1987, por sua atuação em Gaby- A True Story, mas que se celebrizou pelo filme "A História Oficial (premiado em 1985, com o Oscar de melhor filme estrangeiro).
O Oscar também inovou, ao apresentar, pela segunda vez na história, um prêmio póstumo, de melhor ator coadjuvante para o ator australiano Heath Ledger, morto precomente em janeiro do ano passado aos 28 anos, por sua atuação no filme Batman-O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan, onde interpreta o vilão coringa. Não se premiava um ator falecido no Oscar desde Peter Finch, no filme "Rede de Intrigas", de 1977, e, em mais uma inovação da cerimônia, em relação à concessão deste prêmio, foi a de que, pela primeira vez, um filme baseado em uma história em quadrinhos obtém uma premiação dentre as categorias principais. No caso, de melhor ator coadjuvante.
De fato, o Oscar mudou, salvo algumas tradicionais manutenções de formato, deixando, ao menos, de ser aquela festa chata e formal a ocorrer na televisão tao somente para premiar os queridinhos da indústria, numa versão em que o poder do dinheiro e dos negócios era maior que o fascínio da sétima arte e o reconhecimento incontestável do talento artístico de tantos profissionais do show business. O segundo Oscar de melhor ator, obtido na carreira por Sean Penn, por exemplo, pela soberba atuação no filme do diretor Gus Van Sant (outro xamã da cena cinematográfica independente), chamado: "Milk-A Voz da Igualdade", sobre a vida do ativista e político californiano, assumidamente homossexual, Harvey Milk, mostrou que o discurso do "politicamente correto", do respeito à diversidade sexual e fim da intolerância perante as diferenças, tambem predominou na festa do Oscar. A cerimônia já havia extirpado de vez a fama de racista, quando, nos últimos dez anos, premiou com a estatueta nada menos que 5 atores negros e 3 atrizes negras, com os prêmios de melhor ator e atriz, nas categorias principal e coadjuvante, tendo como exemplos, pela ordem: os atores Cuba Gooding Jr., Denzel Washington, Morgan Freeman, Jamie Fox e Forest Whitaker, e as atrizes Whoopy Goldberg, Hale Barry (primeira atriz negra premiada na categoria principal), e Jennifer Hudson.
Na cerimônia de 2009, talentos finalmente foram reconhecidos, como a da bela e jovem atriz inglesa Kate Winslet (popularmente conhecida por sua atuação no filme Titanic, de James Cameron, em 1997), indicada anteriormente seis vezes, e que, finalmente, desbancando concorrentes já ganhadoras do prêmio, como Angelina Jolie e Merryl Streep, ficou com a estatueta, por sua atuação no filme O Leitor, de Stephen Daldry (já comentado neste blog). Além de outros, que não levaram o prêmio, mas ganharam de certa forma prestígio no meio cinematográfico, através de uma vitória moral, pela volta por cima dada e pelo reconhecimento de seus dons dramáticos. Foi o caso de Mickey Rourke, ex-galã da década de oitenta, ressuscitado nas telas e na carreira, após uma franca decadência física e artística nos últimos anos, por seu papel marcante no filme "O Lutador", de Darren Aronofsky.
Pois é, "Benjamin Button" saiu de mãos vazias nos prêmios principais, ficando apenas com as chamadas premiações técnicas (como maquiagem e efeitos especiais), assim como seu intérprete, o ator Brad Pitt e seu parceiro de trabalho, o diretor David Fincher. Porém, a festa de 2009 deve ser lembrada não como o fracasso de um filme que tinha tudo para ser o "Forrest Gump" do ano, amealhando diversos prêmios. Apesar do malogro da cativante fábula sobre a passagem do tempo de Fincher, não há do que se reclamar da justeza das indicações e do acerto nas premiações. O Oscar, este ano, revelou-se como a cerimônia da crise econômica global, onde o esbanjamento de outrora das festas suntuosas e artificiais, deu lugar
a uma cerimônia modesta para os padrões cinematográficos. Uma festa mais inteligente e intimista, como que retratando, metaforicamente, a crítica aos investidores financeiros gananciosos e especuladores, que acabaram por falir o sistema financeiro internacional, e com um Hugh Jackman realmente talentoso e divertido como apresentador, sem se apegar à frases rebuscadas, e nem às tiradas cômicas, formatadas ou pré-ensaiadas de seus antecessores na apresentaçao da festa, além de se mostrar um bom dancarino. O Oscar deste ano ainda teve a tirada irônica, de um tardiamente homenageado Jerry Lewis, que do alto de seus quase noventa anos, ironizou ter recebido um prêmio por serviços humanitários. Ora, e todo serviço não deveria ser humanitário?
Ora, segundo alguns críticos, é óbvio que a lógica de mercado ainda influencia as escolhas do Oscar e seria ingenuidade considerar que os interesses da indústria cinematográfica ficaram de fora na edição de 2009 do prêmio. A diferenca é que os figurões de Hollywood tiveram que ceder às evidências da nova realidade global, e transformar a cerimônia não mais numa festa do cinemao norte-americano, mas sim em fenômeno multicultural. O multiculturalismo, segundo alguns teóricos como Edgar Morin ou Boaventura Santos, é uma das facetas da globalização e talvez seu ponto mais nevrálgico, pois faz com que cineastas, produtores e roteiristas do Primeiro Mundo voltem os olhos para o restante do mundo, percebendo que, com as novas tecnologias e o acesso à informacao, mais e mais talentosos profissionais do cinema aparecem nas mais distintas regiões do globo. Grandes empresas como a Miramax, dos irmaos Weinsten, tiverem um forte papel nisso, valorizando diretores, atores e profissionais latino-americanos, "comprando a ideia" do cinema feito fora de terras yankees, valorizando produções como o filme brasileiro "Cidade de Deus" (filme estrangeiro e falado no idioma nativo indicado como melhor filme e melhor diretor na edição 2003 do Oscar), e elevando ao status de estrelas internacionais cineastas como Fernando Meirelles e Alejandro Iñarritu. Graças à globalização do cinema, astros locais como Rodrigo Santoro agora tentam, com certo êxito, obter visibilidade no cinema internacional, assim como atrizes brasileiras como Alice Braga, também adaptada às novas condicoes impostas pelo cinema globalizado, até bem mais que sua famosa tia, a atriz Sônia Braga.
Foi-se o tempo, portanto, de ver o Oscar como mera festa capitalista dos interesses mercadológicos da indústria do cinema yankee, como queriam meus amigos intelectuais cineclubistas, somente interessados no tal "cinema de autor" (para os não iniciados nos termos de cinéfilos: os chamados "filmes-cabeca"). Ora, os norte-americanos (bem como os europeus), como pioneiros do cinema criaram a indústria cinematográfica, isso é verdade! Porém, a cerimônia anual da entrega do Oscar, assim como o Carnaval no Brasil, acabou por se tornar um dos ícones culturais legados pelo século XX, sendo um digno representante do que de bom e de pior foi produzido nas artes visuais do planeta inteiro. A festa do cinema é cultuada até hoje, por bilhões de espectadores, em todo o mundo. O Oscar não representa todo o cinema e nem toda a cultura cinematográfica global, mas é uma de suas facetas mais importantes, assim como outros festivais tradicionais, como o de Cannes, o de Berlim, o de Veneza, ou o Sundance Festival, que tem seu atrativo, justamente por trazer à tona o fascínio inquebrantável dessa sublime expressão artística, que é o cinema. O Oscar ajudou a sepultar a ideia de que com o advento da era dos videocassetes, dos telões portáteis, e posteriormente dos DVDs, com a opção do "cinema em casa", acabaria-se de vez com a visita às salas de cinema, pois estas poderiam ser consideradas obsoletas, com sua tela grande, cobrança de ingressos, lanterninhas e vendedores de pipoca, diante das inovações tecnológicas. Entretanto, o cinema resistiu e até se fortaleceu, valendo-se das novas tecnologias. Até hoje, a exemplo de minha infância, quando ia todo alegre e serelepe até uma grande sala de cinema, acompanhado de meus pais, vejo que cada vez mais, pais, filhos, amigos, namorados ou mesmo gente solitária, invade os shoppings, não apenas para consumir mcdonalds na praca de alimentação ou comprar roupas de grife, mas sim para ir ao cinema, mantendo a magia da sétima arte. Para os que não são fanáticos por cinema como eu, sinto muito, mas cinema é fundamental!
Que se fechem as cortinas! Até a festa de 2010!
quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009
DELÍRIOS DE UMA FALSA GRÁVIDA OU DELÍRIOS DE UMA EXTREMA DIREITA?: Entre o trágico e o burlesco no caso Paula Oliveira
Na verdade, a pátria amada verde-amarela encontra-se agora em outra encrenca. Agora com a Suiça. Veja bem, a Suiça!! Mas a Suiça não é país neutro? Não foi a Suiça que sempre se absteve de se envolver em conflitos mundiais? Não seriam os suiços o povo mais cordial, gentil, hospitaleiro, receptivo e educado do planeta? Quando eu me lembrava da Suiça quando pequeno, só me recordava de coisas belas e chiques: do chocolate e dos bolos suiços deliciosos, todos recheados, que engordavam as prateleiras de supermercados e as minhas calorias; ou então dos relógios, que geraram aquela conhecida expressão que denota pontualidade, quando se diz: "fulano é tão certeiro quanto um relógio suiço!". Poderia aqui falar dos alpes, das estaçoes de esqui, da diversão de rico, e, sobretudo, no que aprendi na vida adulta do sistema bancário desse país, também tão gentil, cordial, hospitaleiro e receptivo quanto seu povo, permitindo que nossos muitos dignos representantes da classe política, pudessem deixar suas "modestas" economias depositadas nos bancos daquela nação, em paraísos fiscais, onde ninguém notava, e ninguém perguntava, de onde vinha o dinheiro.
Pois é! Na verdade talvez tão irados, ou até mais "p. da vida" que os italianos, nossos novos desafetos nas relações internacionais são os suiços. Se antes, o embaixador italiano "puxou o carro" do solo brasileiro, mediante a birra do governo da Itália, após o resultado mal sucedido da extradição de Battisti, agora é o governo suiço, mais precisamente: sua polícia e seu judiciário, e praticamente toda a mídia impressa e televisa daquele país, que está metendo o pau no governo brasileiro e em seu povo. Tudo isso em função de todo alarde iniciado há pouco mais de uma semana, com o suposto caso de agressão sofrido pela advogada brasileira Paula Oliveira, acusando grupos de skinheads, ou neonazistas, de terem produzido o fato em solo suiço. Quem já conhece o caso, popularizado até enjoar em todos os canais de televisão, no último dia 12 de fevereiro, a imprensa noticiou que a citada advogada teria sido atacada numa estação de trem em Zurique, por 3 indivíduos carecas, parecendo skinheads, que, na ocasião, entre chutes e bofetões, teriam provocado o aborto da vítima, que estaria grávida de gêmeos, a ainda por cima teriam talhado no corpo da coitada, iniciais do partido ultraconservador de direita SVP (parece sigla de time de futebol), e deixado a infeliz aos prantos, enquanto esta ligava estarrecida para os pais, num episódio com fortes contornos de trama, de séries como CSI, Law & Order ou 24 Horas.
Passada uma semana do episódio, nada melhor do que um dia após o outro. Num primeiro momento, num digno exemplo cabal de "afobação diplomática", o ministro Celso Amorim apressou-se em cobrar iniciativas do governo suiço, acusando o país dos chocolates de incentivar a xenofobia, visto que é notório que a Suiça vive um momento político complicado, de acirramento do discurso nacionalista, à beira de uma votação contra o ingresso de imigrantes e com o avanço da extrema-direita, numa Europa corróida pelo fracasso da social-democracia, nas políticas de um mal sucedido Estado de Bem Estar Social.
Ocorre que, como toda novela policial, sempre há reviravoltas, e a mais chocante foi a de que, provavelmente, a advogada supostamente agredida estava mentindo, podendo ter produzido nela mesma, os ferimentos realçados pela chocante foto trazida pelo Jornal Nacional da Rede Globo. Ao menos se teve uma certeza até agora, a de que Paula Oliveira não estava grávida, segundo conclusões da perícia suiça, no momento em que foi supostamente atacada por skinheads.
Aí é que, como nas típicas novelas de Gloria Perez ( que deveria escolher a Suiça como próxima locação de suas novelas, já que a globalizada novelista já fez estórias no Marrocos e agora na India), a mocinha na verdade se transforma em vilã. Como na novela das oito que antecedeu a atual e foi destaque no ano passado, a "Flora" da vez demonstrou, que, de repente, a mocinha passou a ser a bandida. No lugar de vítima, Paula Oliveira foi agora denunciada pelo Ministério Público Suiço por falsa acusação de crime, teve sua identidade e passaporte retido, e pode agora, além de multa, pegar 3 anos de cadeia, por ter, segundo a Justiça suiça, comprometido a reputação do governo suiço e de suas instituições, e de ter produzido, possivelmente, uma das maiores armações midiáticas da história recente, nas relações entre Brasil e Suiça.
Ora, é claro que o caso ainda não foi encerrado, obviamente muitas águas rolarão, provavelmente muito ainda há de ser descoberto, diante (ou não) dos holofotes da mídia, e a pobre senhorita Paula terá que se ver com a Justiça suiça, e empregar dos meios legais que ela tem à disposição (além de advogado) para se defender e expor suas razões. O que se questiona aqui, na verdade, não é a mentira, não é o fato escabroso de alguém poder ter se autofragelado, e produzido toda uma comoção pública mediante um fato supostamente falso, mentindo sobre sua agressão e gravidez. Na verdade, o que comprometeu o Brasil não foi Paula em sua tragédia pessoal, seja lá o que tenha acontecido, mas sim a afobação de nossa diplomacia e, mais uma vez, a cega e sedenta fome de informação e sensacionalismo dos meios de comunicação brazucas, que, mais uma vez, produziram, de forma irresponsável, mais um dos diversos factóides que acabam por comprometer a atuação de nossos agentes públicos. Não é novidade para ninguém que hoje, governantes, ministros e até juízes, adotam iniciativas e tomam suas decisões muitas vezes não influenciados por suas próprias convicções ou fundamentos legais, mas sim pela pressão da mídia, pela "forcação de barra" da opinião pública, manipulada pelos meios de comunicação.
Se Paula errou, errou por que tinha problemas, errou por que vivia trechos de um drama pessoal que só compete a ela resolver e que só ela tem conhecimento. O problema em si, não é a possibilidade, de que tudo por que esta jovem passou, tratou-se de uma farsa, mas sim o burlesco de nossos meios de comunicação, que, apressadamente, e sem fundamento algum, tão e simplesmente à cata de vender manchetes, comprometem as relações diplomáticas entre países amigos, arranhando mais uma vez a reputação de uma nação que se candidata, eternamente, a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU ( onde tu estás com a cabeça, Celso Amorim?!).
A meu ver, inteligentes foram os comentários no site "Observatório da Imprensa", revelando a insensatez e a irresponsabilidade da mídia brasileira no caso de Paula, como no artigo do correspondente Rui Martins, em Berna, dizendo que se a barriga de grávida de Paula, na verdade não existiu, ao menos a imprensa brasileira criou sua própria "barriga"(termo jornalístico): conceito empregado para definir informação imprópria ou desinformação promovida por um meio de comunicação, tão e simplesmente para encher pauta ou chamar atenção para vender jornais e matérias. Foi cobrada, em especial, a responsabilidade da Rede Globo (ahh! ela! a velha Globo), que numa "galvãobuenização" da informação, transformara em espetáculo grotesco a exposição da barriga riscada a estilete de Paula Oliveira, sem nem sequer aguardar as primeiras conclusões dos trabalhos da polícia suiça, e a veracidade da própria informação.
Agora eu pergunto: quem vai apagar o incêndio da má reputação do Brasil perante a Comunidade Européia, em especial a Suiça, por um triste episódio, que mereceu mais atenção do que deveria, e que acabou por comprometer a imagem recíproca que europeus tem dos brasileiros? Quem vai pagar a conta do desgaste, ainda mais que, pela mídia nacional, os suiços ficaram com fama de serem xenófobos, ultraconservadores, neonazistas e direitistas, quando, ao contrário, a maoria de sua população votou favorável a políticas de incentivo à imigração?
Saí é que tua governo brasileiro!! E agora José? E agora Celso?
sábado, 14 de fevereiro de 2009
LIBERAÇÃO DA MACONHA: Até tu, FHC?
Pois agora, Fernando Henrique quer conquistar a simpatia dos maconheiros! No último dia 11 de fevereiro, FHC apresentou documento da ONG Comissão Latinoamericana sobre Drogas e Democracia, anunciando abertamente que era favorável à descriminalização da maconha para consumo pessoal, defendendo, consequentemente, a sua legalização. O ex-presidente brasileiro alegou que se gasta uma fortuna no combate às drogas, e a criminalidade continua aumentando. Para ele, a maconha, que tem efeitos nocivos à saúde tanto quanto o álcool ou o tabaco, deveria ser descriminalizada, quebrando-se o tabu que bloqueia o debate, havendo uma mudança de paradigma, uma vez que a repressão às drogas não poderia ser a qualquer custo, e a maconha seria uma droga com grande disseminação em todos os países latinoamericanos, devendo, segundo o documento, seus usuários serem tratados como pacientes e não como criminosos. Palmas para FHC!
Vejamos bem! A discussão sobre a descriminalização da maconha não é recente, e, tal como o Carnaval, uma vez a cada ano o tema é retomado para debate. Sobre o assunto, inclusive, o jurista gaúcho Salo de Carvalho tem um livro interessante intitulado: "A Política Criminal de Drogas no Brasil" (Lúmen Juris Editora). No livro, Carvalho sustentou a inconstitucionalidade do antigo artigo 16 da revogada Lei 6.368/76 (hoje artigo 28 da nova Lei Antidrogas), que tratava da criminalização do uso de drogas(não confundir com tráfico). Para ele, não é lícito ao Estado punir quem é vítima de si próprio, pois o viciado em drogas, na verdade, pratica uma autolesão, prejudicando a si mesmo, e não aos outros. Portanto, ao invés de caso de polícia, o problema do uso de drogas é questão eminentemente de saúde pública. Há quem duvide disso?
Outros juristas de porte, como Maria Lucia Karam, também são favoráveis à descriminalização, por considerar um atentado aos direitos individuais prender um sujeito com pequena quantidade de droga para consumo próprio. Ora, o consumo de drogas, seja ele qual for (maconha, cocaína, tabaco, álcool, chocolate, jujubas, partidas do Vasco na série B), é um atentado à saúde pública, e não à vida, ao patrimônio ou à dignidade de outras pessoas não consumidoras, que estão na sociedade. O usuário atinge a si próprio, fazendo mal a sua própria saúde, e o direito de escolha de tratar ou não de seu corpo é uma iniciativa somente dele, cabendo a ele procurar ou não ajuda médica e terapêutica para se livrar de um eventual vício, e não de ser curado das drogas por uma síndrome de abstinência forçada, por detrás das grades da prisão, jogando-se o cara num cárcere. É aquele velho jargão de que "vagabundo não precisa de médico, precisa de polícia".
O uso da erva cannabis sativa, marijuana em espanhol, ganja para os jamaicanos, ou simplesmente maconha aqui em terra brasilis, foi popularizado aqui desde as primeiras interações entre os brancos portugueses colonizadores e os índios, no processo de miscigenação e formação da cultura nacional, quando a maconha( essa planta exótica de folhagem característica) chegou ao Brasil, oriunda da África. Foi portanto com a vinda dos negros, os primeiros escravos, que a droga se popularizou, estando seu uso também associado a uma conotação racista, como erva de pretos, ou "coisa de nêgo". De fato, com o crescimento das grandes cidades a maconha e o vício dela decorrente passou a ser associado com malandragem, vagabundagem, delito, uma vez que seus principais consumidores estavam localizados nas áreas e camadas mais pobres da população. O típico maconheiro era aquele negro do morro, desempregado, desocupado ou preguiçoso, que fumava sua erva exatamente para estimular o ócio, o desleixo, uma desculpa para não trabalhar, para ficar "doidão" ou "chapado", justamente para não ingressar em nosso mercado produtivo e praticar crimes para sustentar seu vício. "Maconha emburrece", diz o Ministério da Saúde. Maconha deixa o cara largado, "viajadão", sem interesse para o trabalho ou coisas úteis da vida. Resumindo: coisa de vagabundo!
Ocorre que na década de 60, com os movimentos da contracultura e os hippies, a pregação do amor livre, a revolução sexual e os primeiros protestos estudantis, a classe média jovem, principalmente os estudantes, passaram a se valer com frequência do uso da cannabis sativa, como ocorre até hoje. A maconha naquela época estava associada à contestação, revolta, crise dos valores estabelecidos, uma crítica à caretice conservadora dos pais, que além de retrógados e apoiadores de ditaturas, não estavam propensos a uma "abertura de consciência", que diziam, a droga poderia fornecer. Junto com a folha da erva associou-se o slogan tropicalista de Caetano Veloso: "É proibido proibir"!
Depois, no final da década de 70 e início da redemocratização, com a Lei da Anistia e o movimento pelas Diretas Já, surgiu Gabeira com sua tanguinha de croché, seus hábitos descolados de quem viveu na Europa, e, naturalmente, um "baseado" debaixo do braço. A maconha já estava irreversivelmente instaurada no imaginário coletivo, seja como exercício de transgressão, seja como vício e objeto de dura ação policial, nas políticas repressivas do Estado. Maconheiro era ladrão, no mínimo um vadio, e o fato de um pai ou uma mãe pegar na mochila do filho ao voltar da escola, aqueles famigerados cigarrinhos, contendo a erva maldita, era motivo para brigas, surras, xingamentos, discussões, e até botar o fedelho pra fora de casa! "Maconheiro, meu filho? Não, não, não! Não criei esse infeliz pra ser vagabundo!" Diziam ( e ainda dizem) muitos pais e mães.
Mas a "erva do Diabo"(parodiando Castañeda) ainda está aí para provocar muito buxixo e não é mais apenas para o consumo de viciados, prostitutas, criminosos e vagabundos, ou meio de diversão de artistas do show business (vide o que rolou com o ator global Marcelo Antony). Hoje, em churrascos familiares, na residência de funcionários públicos, bancários, petroleiros, médicos, advogados e até policiais, é comum ver alguém acendendo um baseadinho. Dá pra sentir o cheiro de longe da erva queimada, pra quem mora em condomínios de classe média, desdizendo a imagem que se tem daqueles respeitáveis senhores engravatados e moças recatadas, que saem durante o dia para o trabalho, mas que nos finais de semana são irreconhecíveis maconheiros. "É o fim do mundo. A derrota para Satanás", diriam nossos amigos crentes fervorosos e fundamentalistas. Numa sociedade pós-moderna de completa inversão de valores, resta saber se no meio dessa bagunça toda há solução para o vício. E mais ainda, se há solução para nós mesmos, sem que tenhamos que acionar a polícia toda vez que sentimos o cheiro de que "algo não vai bem"!
Como abolicionista, sou naturalmente favorável à descriminalização, sem que isso importe necessariamente em defender o fomento do vício, e nem assustar nossos amigos conservadores, ou suas dedicadas e valorosas mães e esposas, na proteção da saúde de seus queridos filhinhos! Sou favorável a descriminalizar porque há tempos se percebe que o combate ao vício não corresponde na seara penal ao combate ao crime. São coisas diferentes, pois o traficante criminoso se alimenta do vício, mas o vício não pode e não deve ser tratado criminalmente, pois não se tratam doentes com cadeia, mas sim com terapia, auxílio, medicamentos, amor próprio, fé. O traficante, como qualquer outro criminoso que se vale do comércio de produtos ilegais, lucra não porque o produto que ele trafica provoca o vício, mas sim porque seu produto é ilegal. Da mesma forma funciona o comércio criminoso daqueles que negociam armas, contrabando, órgãos humanos, crianças, produtos roubados e até mulheres ( o chamado tráfico de escravas brancas). O espaço de repressão penal ao traficante já está bem delineado em lei, e resta somente ao Estado regular o consumo de drogas como uma agenda de saúde pública, e não como política criminal. Se há espaço para tratamento de alcóolatras e tabagistas na rede de saúde, porque não haver também para aqueles que querem sair do vício em outras drogas?
Por isso que entendo que apesar da demagogia, FHC está certo quanto aos dados apontados de que a repressão do consumo de drogas não diminui em nada a criminalidade, sobretudo a referente ao tráfico. Deixando-se de criminalizar o uso da maconha poderia até não reduzir a criminalidade, mas ao menos livraria do constrangimento e da repressão inadequada milhares de pessoas que, hoje, se entendermos que não se trata de mera questão de "vagabundagem", optaram por consumir maconha por diferentes motivos, até mesmo terapêuticos, visto que estudos médicos comprovam que consumo de maconha pode ser bom para pacientes terminais, cancerosos, e até para doentes de glaucoma.
Agora pasmo fiquei ao ler o blog do movimento conservador União Nacional Republicana, herdeiro da TFP (Tradição, Família e Propriedade), que em seu site, logo no cabeçalho, informa ao leitor, de imediato, tratar-se de um espaço dedicado a Deus, a Pátria, a Família e a Liberdade (tem até a letra do hino nacional). Os ilustres conservadores nacionalistas também fizeram o mesmo que este missivista, comentando a iniciativa de FHC, no seu polêmico pronunciamento objeto de comentários neste blog. Só que no caso deles, além de desqualificarem o ex-presidente pois, segundo eles, FHC já declarou publicamente que fumou maconha na juventude, ainda pregam o contrário do que disse Fernando Henrique, pregando mais repressão para os consumidores de maconha. "Borracha neles! Porrada nesses viciados safados!!" Devem pensar.
A lógica dos conservadores é a mesma dos personagens exortados por José Padilha, em seu filme-fenômeno "Tropa de Elite". Usuário de drogas ajuda a fomentar o tráfico, é o principal elo catalizador da mercancia de drogas, e, por isso, conforme a teoria da "Janela Quebrada", aplicada pelos criminólogos norte-americanos, o delito deve ser punido em seu nascedouro, penalizando o usuário de pequenos portes de droga para que o fio da meada, ou seja, o final da cadeia alimentar do tráfico, na pessoa do traficante, seja atingido. Os defensores da teoria da "law & order" acreditam que somente com a penalização severa e implacável do porte de drogas, os conhecidos do usuário preso, seus amigos também maconheiros, vão pensar duas vezes e talvez nunca mais tocar em droga, justamente para evitar ter o mesmo fim que seu desafortunado colega, preso pelo vício. É a velha teoria do caráter preventivo da pena, aplicada a ferro e fogo. Ahhhh! Se desse certo!!!! "Pintou sujeira, maluco! Rala peito ou então rebola o baseado pro outro!!" Cadeia pra quem foi menos esperto, e não conseguiu jogar fora "o bagulho" há tempo!
Resta saber até quando irá a cruzada cannabítica do ex-presidente FHC. Sugiro a ele que além dos melhores especialistas na área médica, a ele se juntem Rafael Ilha(ex-polegar), Rodolfo dos Raimundos, o Fábio Assunção, o Marcelo D2 e o comentarista esportivo Casagrande. Vai que aparece o Bill Clinton que também fumou, mas não tragou, e juntamente com o Gabeira eles conseguem legalizar nem que seja uma sementinha! Assim os maconheiros unidos do Brasil varonil poderão acender com tranquilidade seu cigarrinho, e de "tapa em tapa" comemorar a vitória ao som de Bob Marley, rendendo um tributo a Jah!!! Fssssssssssssssssssssssshhhhhhhhhhh. Escuta o som da fumaça subindo!!
*THC: tetrahidrocanabinol-substância química que é o princípio ativo da maconha ( cannabis sativa )
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
70 ANOS da II GUERRA MUNDIAL: A "Culpa Alemã" revisitada nos cinemas
É tempo agora de falar tanto do papel do cidadão médio, do alemão comum, que no fim da década de 30 e começo da de 40 do século passado, correspondia ao inimigo no jargão bélico da época, e da função da então desconhecida "resistência alemã" à supremacia nazista. Filmes como: "Um Homem Bom" (com o ator Viggo Mortensen, interpretando um professor que se alia ao nazismo); "O Menino do Pijama Listrado" ( que trata da história do filho pequeno de um oficial nazista, que vivendo ao lado de um campo de concentração, faz amizade com um menino judeu prisioneiro); "O Leitor" (estória de um estudante adolescente alemão que se envolve amorosamente com mulher mais velha, na Berlim do Pós-Guerra, ex-carcereira de um campo de concentração, que acaba sendo acusada de crimes contra a humanidade) e o último "Operação Valquíria" ( com o astro Tom Cruise, interpretando ninguém menos que um dos heróis nacionais da Alemanha, o coronel Claus Stauffenberg, responsável por um mal sucedido atentado contra Hitler); refletem a necessidade atual do povo alemão de prestar contas à história, limpando de vez seu nome do grau de responsabilidade, pelo surgimento de um dos regimes políticos mais atrozes do planeta, e, reflete também, especialmente, a gana mercadológica dos estúdios de cinema em lucrar com o episódio.
Nunca antes se havia feito tantos filmes, exibidos em sequência, por grandes estúdios em circuito internacional, falando do mesma tema, às vésperas do aniversário de um grande conflito mundial. Isto me faz recordar episódio há pouco lembrado que me ocorreu há mais de dez anos, quando vivia em Natal (cidade brasileira com destaque especial na II Guerra Mundial), ao sair com um amigo meu que estava namorando uma turista alemã. Lembro-me do quanto ele estava empolgado com o novo affair germãnico, pensando até em casamento, feliz por aprender o idioma e satisfeito com os rumos de seu relacionamento, pois além de um simples flerte de verão ter dado certo (já havia seis meses que estavam namorando), e além da moça ter ficado no Brasil, ainda havia trazido os pais dela para conhecer o afortunado amigo. Porém, ele me disse que enquanto conversava com ela, tratando dos preparativos da chegada dos novos sogros, a única limitação que ele poderia ter nos papos com os velhos, era não falar da II Guerra Mundial. Ele me explicou que ao tratar do assunto com a namorada, ela havia dito a ele, que os fatos ocorridos no período ainda eram muito traumatizantes para seu povo, e, especialmente para sua família, visto que tanto seus pais quanto avós haviam participado ativamente daquela época. Os avós dela eram eleitores do partido nazista, e ela tinha um tio que tinha morrido na guerra, defendendo a Alemanha, tendo sido um militante integrante da juventude hitlerista quando moleque.
De fato, para nós brasileiros, que pouco sabemos o que se passava do lado de lá durante a guerra, seja pelos livros de história, seja pelo que é contado pelos (poucos) sobreviventes restantes do período, apenas estávamos acostumados a pintar os nazistas como os "demônios" que ajudamos a derrotar com a heróica participação da FEB em Monte Castelo, ou através da visão maniqueísta das centenas de filmes de guerra hollywoodianos. Foi muito tempo depois que eu comecei a me perguntar: "Como é aquele povo pode ter permitido isso?", ou me indagava se eles eram tão ruins assim, tão perversos, tão arrogantes, tão recalcados, a ponto de colocar um lunático nacionalista e antissemita no poder, e proporcionar horrores tão dantescos como o massacre de judeus, negros, doentes, velhos, ciganos, homossexuais, comunistas e prostitutas, que faria corar Belzebu, e por fim ter colocado a figura de Adolf Hitler como um dos maiores anticristos do século.
O termo "banalidade do mal" foi cunhado pela filósofa judia Hannah Arendt, exatamente para demonstrar esse desconcertante sentimento de indiferença diante da tragédia humana, que se notabiliza pela legitimação social de regimes autoritários. Hoje em dia, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, prefere empregar a expressão "fascismo social", para denunciar nossa indiferença diante da desigualdade. De qualquer forma, é necessário tão somente compreender o sentido desses termos e expressões para ser possível, quem sabe, se familiarizar com o conceito introduzido por Arendt, que talvez explique em parte as razões do comportamento do povo alemão durante os tétricos episódios da II Guerra Mundial, e justifique posteriormente seu inevitável sentimento de culpa.
Em "Eichmann em Jerusalém", Hannah Arendt narra suas reflexões sobre o julgamento pelo Tribunal de Nuremberg do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, acusado, condenado, e posteriormente enforcado por supostos crimes contra a humanidade na Segunda Guerra. Foi neste livro que ela empregou pela primeira vez a famosa expressão que a tornaria famosa, ao fazer, durante as sessões de julgamento do criminoso nazista, uma análise do indivíduo Eichmann. Este, ao ser interrogado, não demonstrou ser um homem perverso, cruel, e nem mesmo antissemita. Eichmann foi condenado e encontrou a morte na execução pela forca, porque agiu de forma indiferente, "além do bem e do mal"( se parodiarmos Nietzche), num metódico cumprimento de ordens, sem avaliar as consequências. Destroçado pela imprensa, Eichmann não era, segundo Arendt, um indivíduo mau, apesar de seus atos não terem justificativa e ele não ser inocente. Na verdade, o criminoso nazista era muito mais um burocrata, de um serviço burocrático, cuja uma das funções era exterminar judeus.
Pensando desta forma, fica mais fácil entender as motivações de um povo, principalmente de uma série de funcionários, soldados e burocratas do governo alemão, que galgaram postos durante a ascensão do nazismo e no meio do holocausto, com o genocídio de judeus, tão e simplesmente movidos pelos ideais de mobilização social e êxito profissional, como se fossem funcionários de uma empresa. Quem não se choca hoje com aqueles executivos ou executivas engravatados, de classe média alta, do alto de seus cursos de MBA e ocupando cargos de gerência em empresas privadas, que demitem subalternos ou humilham subordinados, sem dó nem piedade, tão somente para auxiliar a alegada produtividade da empresa, ou a maximização de custos e resultados? Não seriam esses os nossos nazistas?
No filme de Stephen Daldry: "O Leitor", a personagem Hannah Schimitt, vivida pela atriz inglesa Kate Winslet, vive o mesmo dilema de Eichmann. A personagem, ex-carcereira da SS no período da II Guerra Mundial, em um presídio feminino de cativas judias, vai demonstrar durante seu julgamento toda a lógica burocrática que orientou a racionalidade dos atos de um criminoso de guerra como Adolfo Eichmann. O horror é traduzido pela indiferença, pela banalização da vida humana, sacrificadas em prol da relação custo X benefício da burocracia e do poder estatal, e através dessa atônita constatação passamos a entender melhor o que legitimou a ascensão de Hitler em seu II Reich. Segundo Maquiavel, na feitura de "O Príncipe", os atos morais é que necessitam de uma justificação moral, já os atos políticos não. A política é movida por resultados, e não por um fim em si mesmo, como uma intervenção moral. Moral e política estão doravante, dissociados, e foi em prol de resultados, ou seja, pelo progresso almejado pelo discurso nacionalista do Partido Nacional-Socialista Alemão, proferido por um ex-cabo e pintor fracassado, que o povo alemão deu carta branca aos nazistas para que chegassem ao poder. Eram as promessas de sucesso, de prosperidade, de resgate da identidade coletiva de um povo, de reerguimento de uma sociedade atolada na miséria, destruída economicamente pela I Guerra Mundial, que Hitler e seus comparsas puderam então implementar sua política da "solução final", promovendo o armagedon e aniquilando milhões de seres vivos. Nada muito diferente do que eleger um governo populista ou legitimar uma ditadura sul-americana. Afinal de contas, George W. Bush também foi eleito pelo voto popular!
Fico me perguntando quantos intelectuais, funcionários públicos, estudantes, ou tão e simplesmente gente atrás de emprego e dinheiro, ficou seduzida pelo discurso do governo de Hitler no poder, e se empreendeu no esforço de guerra, trabalhando em fábricas de armamentos, prestando o serviço militar, ocupando cargos na burocracia, prestando concursos para ingressar na Gestapo ou na SS, trabalhando como carcereiros, ou apenas se ocupando de servir cafézinho para os figurões do regime nazista. Hoje, falar para um alemão contemporâneo ou para um descendente de alemães, que um de seus ancestrais colaborou para o regime hitlerista é o mesmo que provocar briga com o sujeito, ou, no mínimo, tocar num assunto delicado e constrangedor, onde muitos preferem ficar calados, no silêncio obsequioso dos mais velhos. É difícil conviver com a experiência nazista porque é difícil viver com a experiência do holocausto, eu sei, mas o mais difícil talvez seja conviver com a "consciência do absurdo"(nos dizeres de Albert Camus), que é o de descobrir que os caminhos traçados com tanta dedicação e esforço, na verdade não faziam o menor sentido. Dura é a constatação do erro, mas o pior é a reflexão sobre a falta de sentido. Que sentido ficou para o povo alemão depois que Dresden foi bombardeada, seu território inteiro foi destruído, milhares de seus filhos e filhas foram mortos, e seu país foi por décadas, durante a Guerra Fria, dividido em dois, entre duas potências antagônicas (EUA e URSS)? Creio que os alemães, no seu catolicismo ou no seu luteranismo, deram graças a Deus quando pelas abençoadas pernas de Franz Beckenbauer, e depois pelo talento de craques como Vohler, Matthaus e Balack, a Alemanha deixou de ser conhecida apenas como a terra do nazismo, mas também como país do futebol, após suas vitórias e finais nas Copas do Mundo.
Tive a oportunidade de conhecer melhor o povo alemão, ao menos pela visão de seus descendentes, com minha estada no Rio Grande do Sul, especialmente em cidades como São Leopoldo e Santa Cruz, terras de imigração alemã. Aprendi a gostar de sua cultura, sua culinária, seu idioma ( que inclusive quero aprender), suas festas populares, sua cerveja (regada em muitos Oktoberfests), sua doutrina cristã-luterana, e até sua música, curtindo o heavy-metal da banda Rammstein. Confesso que não foi só a beleza da alvura leitosa e dos cabelos loiros das belas valquírias alemãs que me conquistou, mas também sua cordialidade pitoresca, seu jeito aparentemente turrão, que na verdade desenham em seu interior pessoas calorosas, amistosas e com muito senso de humor, e, é claro, sua vasta literatura, que vai desde um clássico Goethe, meus livros em Direito de autores alemães, até as obras de Thomas Mann e outros interessantíssimo autores.
Agora, só me resta posicionar-me dentro desse sentimento de culpa a que aludi e ainda considero latente naquele povo, dizendo que eles não tem hoje, que se envergonhar do triste período, em que ficaram na história por ter galgado ao poder um ditador perverso e um tirano. Na verdade, no Brasil, nós tivemos aqui nossa parcela de culpa, e boa parte da classe média se ressente hoje de ter favorecido, em seu conservadorismo a ascensão dos militares em 64, ou a eleição de Fernando Collor em 89. O que dizer dos paulistanos iludidos pelo malufismo, que mesmo sabedores do caráter duvidoso de seu candidato ( além de seus inúmeros processos na Justiça), legitimaram não apenas a entrada de Maluf na prefeitura paulista, como também deixaram que seu assecla, Celso Pitta, desgraçasse a cidade, comprometendo os cofres públicos e autoestima da metrópole, com consequências que se fazem sentir até hoje? E quanto aos argentinos e chilenos, que se lamentam e até hoje tentam se recompor de seu passado, prestando contas à história e as suas consciências, até hoje tentando colocar na cadeia os líderes militares que o povo mesmo apoiou e auxiliou na tomada de poder? Não, não! Na verdade não somos tão diferentes assim do povo alemão, e também temos nossas culpas coletivas, que tentamos, a duras penas, conciliar. Se não pecamos pelo excesso, pecamos pela falta de discernimento ou de consciência política, nas escolhas que fizemos de quem seriam nossos governantes, e de que rumo tomaria o nosso Estado.
Agora, alemãozada amiga, vocês podem descansar em paz! Podem dormir sossegados!
quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
HQs: POR QUE "WATCHMEN" É TÃO BOM?
Antes de comentar propriamente a obra mais importante de Moore, vale aqui tecer uma reflexão sobre o papel das histórias em quadrinhos na cultura moderna e popular. Dizem que o hábito de ler gibis começa na infância, como uma forma de aprendizado estimulado pelos pais, para que os filhos desenvolvam o saudável gosto pela leitura. Acho que seja mais do que isso! Ler gibis, para muitos como eu, não é apenas perpetuar um hábito de infância, mas sim uma verdadeira paixão e especial prazer obtido com um tipo de leitura, que conjuga a riqueza das imagens com a profundidade de textos, que, de infantis, não tem nada. Vale salientar que para alguns, a paixão pelos gibis é passada pela tradição, de pai para filho, como foi no meu caso, visto que me interessei pelas aventuras do Capitão América, Homem-Aranha, Hulk, Superman e do Batman, muitas vezes estimulado por meu pai, que sempre foi fã de quadrinhos, tendo lido na década de 50 muitos gibis clássicos do Flash Gordon, Tarzan, Fantasma e Mandrake, além de toda linha de histórias de faroeste, principalmente de Tex e do Zorro.
Recordo-me que até hoje, todas as vezes em que estou (bem) acompanhado de uma namorada ou paquera, ela se ri quando, dentre meus diversos gostos literários, eu me animo todo como um moleque, ao chegar na prateleira de histórias em quadrinhos, seja em livrarias ou bancas de jornal, folheando com esmero aquelas páginas e páginas de pura literatura fantasiosa. Dizem que eu não tinha perdido meu lado criança ao gostar daquele tipo de leitura, e, entendem ( para todo não iniciado no universo dos quadrinhos) que ler HQs seria coisa de criança. Ledo engano!
As histórias em quadrinhos hoje ( ou comics, se preferir) correspondem a uma fatia significativa do mercado literário mundial. Tanto isto é verdade que, hoje, é tão ou mais comum ver grandes edições encadernadas da Marvel e da DC estrearem lado a lado, nas vitrines das lojas e livrarias, com grandes edições de best-sellers ou novidades do mercado editorial, como as obras de Paulo Coelho, os livros de Dan Brown, ou os recorrentes manuais de autoajuda. Isto se deu por uma evolução na concepção de gibis e desenvolvimento dos enredos nas histórias em quadrinhos, numa revolução iniciada na década de 80, tendo como precursores autores hoje consagrados e admirados, não só como roteiristas de quadrinhos, mas sim como escritores famosos e premiados, tais como: Neil Gailman ( da série "Sandman"), Frank Miller (autor de "Sin City"), e o próprio Alan Moore.
É verdade que a nova dimensão adulta das histórias em quadrinhos teve seus precursores, como Neil Adams, com suas histórias do Batman, além de Dick Giordano e outros na década de 70. Mas foi na década de 80, onde me recordo, de saudosa memória, que um escritor baixinho e magricela contratado pela Marvel chamado Frank Miller, foi o responsável por um das maiores revoluções na história desse gênero de literatura, ao se envolver numa arriscada empreitada, a de lançar uma ousada e bem sucedida obra intitulada: "Batman-O Cavaleiro das Trevas". Miller já havia feito "o diabo" nas estórias de outro personagem da Marvel, que sempre admirei além do Homem-Aranha, que era o Demolidor. Não era apenas o estilo de desenhar de Miller que me encantava, mas sim a profundidade e a forte marca existencial que ele desenvolvia no roteiro de suas histórias. No "Cavaleiro das Trevas", o desenhista-escritor Frank Miller iria transformar de vez o gênero das HQs, criando os graphic novels ( ou "romances gráficos") se preferir. Verdadeiras sagas, romances, dramas humanos e adultos, valendo-se de personagens encapuzados ou superpoderosos, em histórias transformadas em desenhos, onde o desenrolar da trama se dava por meio da leitura de balões e por imagens, que por muitas vezes, traduziam mais do que as palavras. Ler histórias em quadrinhos, a partir daquela época, significava não só dar asas à imaginação e se encantar com seus personagens fantásticos, mas também iniciar-se no rumo da literatura adulta, com tramas ágeis, modernas e divagações existenciais profundamente maduras e atuais. Miller e outros de sua época abriram, inclusive, as portas do cinema para os quadrinhos, visto que foi através do ritmo cinematográfico em que passavam a ser escritas as estórias que, logo em breve, muitos dos lendários super-heróis da Marvel e da DC iriam parar nas telas grandes, gerando famosas e bem sucedidas franquias tais quais: "Batman Begins" e o recente "Batman-O Cavaleiros das Trevas" (considerado um dos melhores filmes de super-herói de todos os tempos, e o primeiro a ter um ator indicado postumamente ao Oscar), Homem-Aranha (1,2 e 3), Superman-o Retorno e a série X-Men.
Foi justamente nessa época, que o escritor e roteirista de quadrinhos Alan Moore escreveu talvez sua maior e mais desafiadora obra, a mini-série "Watchmen". Para quem não conhece os trabalhos de "Sir" Moore, esse carrancudo, barbudo e cabeludo escritor, nascido em 1953, em Northampton, Inglaterra, é especialista em recriar histórias de super-heróis, sobretudo aqueles mais clássicos (vide a homenagem que ele fez as estórias do Super-Homem na série "Supremo"), dando-lhes uma injeção de realidade, preenchendo-os dos dramas humanos de pessoas comuns e reais. Além disso, Moore é um cara altamente politizado, subversivo por assim dizer, tendo sido um profundo crítico e um dos principais inimigos no meio literário, do governo de direita da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do governo Reagan, nos EUA, na década de oitenta. Moore consegue passar seu estilo meio hippie e apocalíptico para suas estórias, tendo sido acompanhado do excelente desenhista Dave Gibbons, para retratar o que seria para alguns, o verdadeiro Novo Testamento dos Quadrinhos: a série "Watchmen".
Mas por que para seus devotos fãs, a saga dos "homens-relógio" em "Watchmen" é tão importante, a ponto de alguns críticos separarem as HQs em AW (antes de "Watchmen") ou DW ("Depois de Watchmen")? Na verdade a estória dessa saga começa numa disputa pelo mercado editorial dos quadrinhos, quando a DC publica pelas mãos do desenhista George Perez e roteiro de Marv Wolfman, uma outra obra revolucionária, que tinha a intenção de rever o conceito de super-heróis, na epopéia chamada "Crise nas Infinitas Terras"( relançada recentemente em edição encadernada pela Editora Panini, e que li a versão original na íntegra, na década de 80). Enquanto Perez estava ocupado matando e ressuscitando super-heróis, coube a Moore escrever, na época sem maiores pretensões, uma estória que se passava numa realidade alternativa, onde a "direita" (leia-se hoje os neoliberais) havia obtido o poder em todo o mundo, os EUA haviam ganho a Guerra do Vietnam e Richard Nixon continuava sendo o presidente da nação norte-americana, em plenos anos 80.
É dentro dessa realidade que a estória começa, quando é assassinado O Comediante. Um ex-herói fantasiado, de caráter duvidoso, que na meia-idade, assolado pelo álcool e pela culpa, é arremessado do décimo andar do prédio onde morava, vindo a estatelar no chão. Naturalmente, como em todo conto policial, ninguém sabe quem cometeu o crime e nem suas motivações. Mas é em meio a paranoia de que outros ex-heróis possam vir a ser mortos que Rorschac, outro herói encapuzado, decide investigar o crime, buscando reagrupar seu antigo grupo, os Watchmen, agora todos aposentados em função de um decreto governamental, que declarou ilegal todo e qualquer grupo ou associação de vigilantes mascarados.
É justamente pelo título da obra, que Alan Moore desconstrói o conceito de super-heróis, fazendo aqui uma crítica dos famosos super grupos, exortados nas histórias em quadrinhos tradicionais (tais como a Liga da Justiça, os Vingadores ou a Sociedade da Justiça). Em "Watchmen"(homens-relógio ou vigilantes), cada personagem do grupo tem a sua história e o seu perfil psicológico detalhadamente traçados. Sabemos na estória de Moore, por exemplo, que antes dos Watchmen, havia os Minute Man (homens-minuto), grupo da década de 40 também formado pelo Comediante quando jovem, e por Sally Júpiter, a primeira Espectral, que vão se envolver num trágico acontecimento que vai marcar a história do grupo para sempre. No decorrer da história o leitor começa a descobrir mais dos traços do caráter e da história do Comediante, sabendo por exemplo, de como se deu o grau de envolvimento deste personagem em fatos como a Guerra do Vietnam, ou como este, de super-herói tornou-se uma espécie de carrasco, um agente da repressão estatal, sem moralidade, que não faz feio a nenhum torturador das antigas ditaduras sul-americanas.
Também na história são enfocados outros personagens, como o Coruja, cujo próprio nome confessa o isolamento, a insegurança e o retraímento de seu personagem. Ozymandias, personagem baseado num ser mitológico, que tal como Bruce Wayne (alterego do Batman) abandona a luta contra o crime, tornando-se um famoso milionário, responsável por obras filantrópicas. Conhecemos no gibi a segunda Espectral, Laurie, filha de Sally Júpiter, que se tornará esposa do Doutor Manhattan, o personagem mais enigmático, mais filosófico e mais poderoso do grupo, e de seu envolvimento extraconjugal com o personagem Coruja.
Sobre o Doutor Manhattan, sua estória é contada no segundo volume da obra, resumindo-se que ele era, na verdade, Jon Osterman, um aprendiz de relojoeiro na infância que se torna cientista, e num desastrado acidente nuclear em seu laboratório de pesquisas, é trancafiado numa sala numa experiência, e é literalmente desintegrado por um canhão de partículas. Ocorre que mesmo após ter seu corpo destruído, a consciência de Osterman ainda persiste, e através dos poderes obtidos pela experiência nuclear começa a reconstruir seu corpo, tornando-se o Doutor Manhattan. Este personagem, diferente dos outros, é o único na verdade com superpoderes, já que os outros componenentes do grupo só possuem treinamento de luta, equipamentos e habilidades avançadas.
O drama que persegue o Doutor Manhattan é que acaba sendo consumido pelo seu próprio senso de lógica e racionalidade, como uma metáfora que Moore faz da própria ciência moderna, uma vez que o personagem, a partir do acidente que sofreu, torna-se uma criatura mais avançada, e, em contrapartida, mais distante fisicamente e psicologicamente. Para Manhattan, o mundo não passa de uma reunião de partículas subatômicas, e a cada ano, ele acaba cada vez mais se afastando da espécie humana, desligando-se das coisas do mundo, por não ver mais sentido na manutenção da raça humana. Seu tédio, desilusão e isolamento serão fundamentais para o desenvolvimento da trama, à medida que o grau de tensão na história vai aumentando, e no futuro será necessária sua intervenção, para que ocorra o climax da saga de Moore.
Todos os elementos de uma novela adulta estão em Watchmen: mistérios, intrigas, traição, paixão, revolta, sexo e violência, muita violência. Porém, fugindo dos clichês do gênero, a obra consegue ser uma fábula pós-moderna, quando revisita a estória de heróis, correlacionando o histórico dos vigilantes mascarados com o histórico dos últimos acontecimentos do século XX no pós-guerra, como a Guerra Fria, a contracultura, e o apogeu do neoliberalismo no fim do século. Além disso, a trama de Moore passa longe do fio condutor maniqueísta da luta dos mocinhos contra os bandidos. Na verdade, em "Watchmen", os personagens que compõem o grupo de vigilantes mascarados e sua contraparte no mundo do crime, possuem ambos todas as ambiguidades, contradições e conflitos típicos de uma pessoa comum. O personagem Rorschach, e seu alterego Walter Kovacs, espancado pela mãe drogada e prostituta quando era criança, e educado num reformatório, até se tornar um justiceiro na noite da cidade, agredindo e matando criminosos de rua, é um lapidar ingrediente das personalidades atormentadas dos protagonistas, exploradas por Alan Moore, em sua fábula sobre uma "liga da justiça de desequilibrados". Talvez o grande mérito de "Watchmen" na década de oitenta, foi ter justamente quebrado com aquele paradigma idílico do herói, explorado por tantos anos nos gibis da Marvel e da DC. Os heróis mascarados são agora anti-heróis, ambíguos em sua natureza e em propósitos, que participam da trama humana da vida, exercitando ao máximo suas virtudes, seus atributos positivos, e também seus vícios, os piores atributos de suas personalidades.
Assim, como diz meu colega, estudante do Doutorado em Teologia, professor Iuri Reblin, autor do instigante livro: " Para o Alto e Avante-uma análise do universo criativo dos super-heróis"(Ed. Asterisco, 2008), os super-heróis são definidos na cultura de massa contemporãnea como uma simbologia de um corpo ideal ou real, cuja limitação do corpo físico engendra uma representação cultural dos super-heróis, como fenômeno que dá resposta aos desejos, saudades, desafios impostos pelo mundo e pela sociedade, e o seu sonho de superá-los. Já os heróis de "Watchmen", aparentemente, representam esse mito da superação do corpo, para depois voltar à realidade dos corpos humanos, à medida que os heróis da trama seguem o caminho inverso do traçado, originalmente, nas clássicas tramas de HQs. Ao invés de deixarem de ser simples humanos e tornarem-se seres fantásticos, os personagens da obra de Moore fazem o caminho contrário, através de suas inquietações e conflitos internos. Eles já são poderosos, já são conhecidos, já são famosos, mas eles se humanizam e passam a se parecer mais com as pessoas comuns à medida que se deparam com seus próprios medos. O personagem do Comediante, e o mistério que este engendra, são o exemplo cabal do retorno a esse homem limitado e angustiado, que representa o homem da sociedade pós-moderna.
Resta saber se o filme de Zack Snider, anunciado com estardalhaço agora para 2009, e com seu trailler bombando no Youtube, será fiel, ou a menos semelhante, com a sofisticada trama elaborada por Alan Moore nos quadrinhos. Como se sabe, o escritor de quadrinhos bardo é notoriamente avesso a toda e qualquer adaptação de sua obra para os cinemas. O filme "Watchmen" carrega consigo o profundo desafio de explorar toda a complexidade carregada na clássica graphic novel oitentista. Se conseguir, poderemos estar diante de um ótimo filme e possivelmente da melhor adaptação cinematográfica de gibis da história. Acho muito difícil!
domingo, 8 de fevereiro de 2009
MUSAS DO CINEMA E DA MÚSICA: Zooey Deschanel, minha nova paixão!!
Pois é, além de atriz, a menina é cantora. Pra quem não conhece a gata e gosta de comédia inteligente, vale assistir ao filme baseado no livro de Douglas Adams, " O Guia do Mochileiro das Galáxias". No filme, Zooey interpreta Trillian, par romântico do protagonista Arthur Dent. Antes, ela já tinha trabalhado em 2000 no filme "Quase Famosos", fazendo a irmã mais velha do personagem de Patrick Fugit, que acaba por se tornar aeromoça. Enveredando pelo suspense, a senhorita Deschanel foi a esposa de Mark Walberg, no suspense "Fim dos Tempos", último filme da, infelizmente ,decadente carreira de M. Night Shyamalan (vide seus êxitos anteriores, como o "Sexto Sentido"). Recentemente, Zooey pode ser vista no último filme de Jim Carrey, "Sim Senhor".
Agora o que me chamou atenção nessa garota não foi apenas seu estilo de beleza meio hiponga e despojado, parecendo muitas daquelas paqueras universitárias que adoramos chamar pra sair, ir ao cinema e depois levar para umas festas, regadas a chope e papos que vão de Nietzsche, Derrida ou Foucault até os discos dos Stones ou do Coldplay. Zooey Deschanel chama atenção porque seu jeito doce, meio tímido ou chapado, transparece não apenas nas telas, mas também na música. A gata se tornou a nova musa alternativa, apesar de aparecer em blockbusters do cinema, justamente por incorporar no seu jeito de ser, como atriz e cantora, um estilo que passou a ser definido alguns anos como indie. Pois é, essa expressão, que para os não iniciados parece coisa de "índio" ( e não deixa de ser), foi uma gíria extraída da palavra independent, que foi usada pela primeira vez no fim da década de 80 por radialistas ingleses, pra definir a nova cena musical roqueira do pop britânico e norte-americano, gerada não a partir de grandes gravadoras, mas sim de pequenos estúdios e selos independentes, trazendo à tona bandas hoje antológicas como Teenage Fan Club, Belle & Sebastian, Pavement, entre outros.
Pois é, nunca o termo indie ficou tão bem expresso nas telas a partir das interpretações dessa bela atriz norte-americana de 28 anos, nascida numa família de atores. Mas como estou aqui não apenas para elogiar a beleza da gata ( que é muito linda mesmo), vale ressaltar não apenas seu talento para as telas, mas sim seu especial dom pra outras mídias, especialmente na música, após ter escutado o excelente e comovente Volume One.
No disco da dupla She & Him, Zooey e Ward conseguem inovar na cena musical, não figurando mais apenas como mais um dos bons grupos de rock formados por um casal, tais como: White Stripes ou The Kills. Talvez She & Him tenha um pouco de Carpenters, só que menos meloso e com mais pegada. As músicas são certamente "fofinhas", belas de escutar em suaves canções de amor com pegada folk, falando de corações partidos. Porém, o mais interessante é perceber que além de belas, as canções rendem um verdadeiro tributo às influências musicais dos anos 60 e 70, no que havia de melhor no soul, como as canções do trio Supremes, algumas lembrando o ar psicodélico de uns Beatles numa fase pós Sargent Pepers e outras numa levada que rende tributo a um Bob Dylan em fase mais animada. Ao escutar a primeira faixa: Sentimental Heart, por exemplo, sentado à beira da janela num final de tarde, é difícil de não deixar as lágrimas escorrerem após um breve sorriso de agradecimento a Deus, por ter legado pérolas musicais tão prazerosas de escutar, tão gratificantes como experimentar o beijo da mulher amada ou sorver um belo gole de vinho. Escutar This is not a Test é voltar a adolescência, com uma pegada de violão, coro setentista e panderola, dando vontade de sair correndo até o parque mais próximo e tão e simplesmente deitar no gramado, observando o céu, tomando um sorvete. O compasso marcante de Why do you Let me Stay Here me dá vontade de ter sido adolescente nos anos sessenta, ouvindo jovens Lennon e Mccartney, ou curtindo o fim de tarde ouvindo o bater das ondas numa praia, ao lado da sonoridade de um Beach Boys. Vale a pena conferir também a versão que a gata faz da clássica I Shoud Have Known Better, eternizada com os Beatles e conhecida por uma famosa versão em português cantada por Renato e Seus Blue Caps. É pra sair dançando colado nem que seja com uma vassoura no cantinho do quarto ou da sala, e ouvir muito, muito! É pra tocar muito!!!
Esse som sinestésico, convergindo para uma nostalgia saudável ( afinal, hoje tudo se copia, diriam alguns, mas na verdade tudo se inspira no passado, como "o etorno retorno" mencionado por Nietzsche), aliado à voz lânguida de miss Deschanel, só me leva a acreditar que ainda existe esperança para a humanidade. É lógico que alguns poderão falar aqui de outras belas atrizes, que tentaram até com certo êxito a carreira musical, como o bom disco da loira Scarlet Johanson, em parceria com o mitológico Tom Waits. Só que a atual musa de Woody Allen pode até mandar bem com sua voz rouca num disco de covers, mas se percebe que seu tom de voz não alcança determinadas passagens, que são lidadas com facilidade pela gracinha de cabelos negros Zooey Deschanel, que devem ser tão perfumados quanto o sobrenome, que faz lembrar a famosa marca de perfumes.
Deus existe e inventou Zooey Deschanel. Vê-la no cinema e poder ouvi-la em disco é uma benção. Estou novamente enamorado! Ula-la-la!!
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009
A (falsa) polêmica entre evangélicos e homossexuais: SERÁ A HOMOFOBIA CRIME?
Naturalmente percorri o blog de Severo, li vários de seus artigos e links e, espontaneamente, adicionei seu blog a minha lista de Favoritos. Como já disse em outras ocasiões, como sou rotulado de liberal de esquerda, apraz-me saber por quantas anda o pensamento conservador a que me oponho, sobretudo se é tracejado inteligentemente em boas linhas.
Porém, além de liberal também sou protestante, ou evangélico, como queiram, mas, antes que meus diletos amigos ou leitores ateus torçam o nariz, informo que como cristão sou libertário, e como cidadão minimamente politizado, radicalmente democrático; pois entendo que na primeira opção, para mim, a mensagem de Cristo é eminentemente libertadora, e não corresponde a um Deus rude, "severo"(ao estilo dos conservadores) e autoritário. Deus é onisciente e onipotente sim, porém não tão implacável e julgador, que a tudo olhe e a tudo acuse, exigindo-nos o tempo inteiro a redenção dos pecados e o sublime arrependimento, para que não queimemos no fogo do inferno ( ao menos conforme pensa o alerta dos crentes fundamentalistas). Ser um cristão libertário não significa ser conivente com uma suposta libertinagem de conduta, e nem defensor de um "Deus do oba-oba", que permita que se faça tudo e se queira tudo, mas sim acreditar que o Deus pregado por Cristo no Evangelho é um Deus que liberta através de seu perdão, libertando inclusive as consciências das amarras da opressão de pensamento.
Na verdade ao pensar assim, antes que alguns irmãos cristãos me chamem de, no mínimo equivocado, e, no máximo, herege ou possuído pelo Diabo, creio que ao me pronunciar desta forma, uma vez tendo estudado numa faculdade luterana apesar de minhas origens batistas, sou, senão oficialmente, ao menos implicitamente, um descarado luterano! Sim! Pois ao ler os textos de Martinho Lutero, senti o mesmo avivamento espiritual combinado com uma dose de inspirada racionalidade, quando li pela primeira vez as palavras de Cristo nos versículos da Bíblia. Claro que Lutero não se compara a Cristo, pois não é santo, e a própria doutrina luterana é avessa ao culto de santos ( um dos motivos de rompimento com a Igreja Católica), pois, afinal, nenhum homem que viveu ou ainda viverá será santo, e só nos resta como criaturas de Deus (pra quem acredita) viver com dignidade nossa condição de pecadores, sabendo ao menos que temos um Deus piedoso, misericordioso, que nos ilumina e nos salva da destruição mediante sua Graça.
Acho cômico alguns de meus interlocutores fundamentalistas me acusarem de promover uma graça barata, ou de dizer que não vivi exponecialmente a dimensão sagrada do arrependimento. Dizem que ao promover a graça é como se Deus não exigisse nada em troca. Ora, se nos reconhecemos como pecadores e imperfeitos, por mais que demos a Deus algo em troca, nada disso adiantará! Não adianta ser filhinhos bem comportados, bons fazedores do dever de casa, austeros, legalistas, cumpridores das exigências e recomendações bíblicas, bons frequentadores dos cultos dominicais na igreja, e adeptos de uma vida ascética ou "santa", se não temos o principal: que é a fé, mas muita, muita fé no coração, para seguirmos os ensinamentos de Cristo no tocante à pregação do amor ao próximo, da tolerância, da justiça (principalmente a social), da defesa dos oprimidos e incapacitados, do respeito às diferenças, da humildade e da capacidade de servir para ser servido. Afinal de contas, você quer um exemplo de troca maior que a de Cristo, ao sacrificar sua própria vida na cruz, para redimir os pecados da humanidade, dando a Deus sua própria existência física em troca de todos nós? Por que tanta expiação agora? Por que tanta preocupação com o arrependimento? Lutero alertava, segundo Paul Tilich em "História do Pensamento Cristão", que o pior pecado do ser humano seria não crer. E hoje, face ao fundamentalismo religioso, vemos que na pós-modernidade, cada vez mais as pessoas deixam de crer, ou vão crer em outra coisa (fama,carros, dinheiro, ascensão social, prostituição, bebidas, drogas, esoterismo barato etc).
Mas chegando ao cerne de nossa discussão, já que fugi muito do assunto na minha introdução, retornando ao tema do título deste comentário, interessa-me em particular toda a polêmica e os embates travados após a proposição e tramitação do projeto de lei 122/06, que criminaliza a homofobia. Segundo o texto do projeto, a futura lei cominaria a pena de prisão ou multa para aqueles que discriminassem homossexuais, e não demorou para que muitos representantes das igrejas evangélicas no país se insurgissem contra o projeto da senadora Fátima Cleide (PT/RO), alegando que o citado projeto, se for aprovado, instituíra automaticamente uma verdadeira perseguição aos cristãos, nunca vista desde os tempos de Roma com Nero, pois prejudicaria todos os pastores e líderes religiosos, que se pronunciassem publicamente de seus púlpitos, contra as práticas homossexuais. Foi no calor desses acontecimentos que Julio Severo foi entrevistado pela revista gay "A Capa", e interessado na opinião de seus leitores, o articulista apressou-se em divulgar os trechos de sua entrevista via e-mail para todos os seus leitores.
Gentilmente respondendo as perguntas que lhe foram formuladas, Severo reforçou seu compromisso de fé cristã e num saudável ambiente democrático declarou quais eram suas opções de vida e convicções. Durante a entrevista ele ressentiu-se bastante dos processos movidos contra ele por entidades de homossexuais, reclamando especialmente de processo movido contra ele pelo Ministério Público Federal. Severo foi bastante indagado se achava que o projeto de lei 122/06 não serviria para coibir as agressões e assassinatos de homossexuais, e o escritor evangélico refutou, afirmando que o contingente de gays assassinados no país não corresponde sequer a 10% das pessoas que são mortas violentamente a cada ano, e insinuou que muitos dos que morreram procuraram por isso, pois foram mortos por estarem na rua, altas horas da noite, em zonas de drogas e prostituição. Severo reclamou das ameaças que vinha recebendo e da censura em seu blog, pelo simples fato de emitir suas opiniões cristãs. Ele disse que se o citado projeto fosse aprovado ele seria um dos maiores prejudicados, e quando foi perguntado se, ao recomendar em seus livros que os pais fossem vigilantes e não se descuidassem de perceber na escola de seus filhos, se algum professor ou aluno aparentava ser homossexual, ele não estaria desta forma promovendo o ódio, a intolerância e a exclusão, ele respondeu que tão e simplesmente estava tentando alertar a sociedade brasileira para as nocivas práticas homossexuais, que somente contribuíriam para a desagregação social. Severo chegou a afirmar que seria o homossexualismo, na verdade, que promoveria o ódio e a violência, uma vez que em um de seus livros ele alerta para os perigosos da homossexualidade, informando, por exemplo, que boa parte dos casos de estupros de adolescentes, pedofilia e corrupção de menores eram provocados por criminosos homossexuais.
Tratando a respeito da acirrada polêmica de Julio Severo com os homossexuais, a título de exemplificação dos conflitos havidos entre segmentos evangélicos e combatentes da homofobia, em função do projeto de lei 122, penso que posso me manifestar não apenas como cristão, mas também como um estudioso do Direito, entre os vários ramos do conhecimento onde já queimei as pestanas.
Sabemos que a Constituição assegura a liberdade religiosa, assim como estabelece a liberdade de pensamento, o direito à intimidade e à inviolabilidade da vida privada, a proteção contra qualquer tipo de discriminação e não obriga ninguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. A Constituição estabelece estas normas e princípios porque é uma norma maior de um Estado democrático e cidadão, pois se não fosse assim seríamos uma ditadura ou teocracia. Recordo-me de excelente discurso do atual presidente norte-americano, Barack Obama (ele também um professor de direito constitucional), dizendo que numa sociedade democrática e respeitadora de sua constituição, todos seriam ao mesmo tempo cristãos, muçulmanos, budistas, hinduístas, taoístas, confucionistas e toda e qualquer crença possível num ambiente de respeito entre diferentes. Isso se aplica, inclusive aos ateus, conservadores, liberais, heterossexuais, homossexuais, hermafroditas, eunucos e toda gama de orientação sexual possível. Se admito pela Constituição uma sociedade onde todas essas pessoas diferentes podem (e devem) conviver, é porque asseguro que em termos constitucionais, todas essas pessoas estão protegidas e a salvo de discriminações.
Agora se penso como cristão, entendo que nem pode se discriminar pessoas por sua orientação sexual e nem por sua crença religiosa. "Cada macaco no seu galho" e " a cada um, o direito de cada um". Nem posso tentar criminalizar aqueles que por sua crença repudiam o homossexualismo, como também não posso prender quem manifesta aguda homofobia. Posso discordar de quem tem uma opinião ou orientação sexual diferente de mim, mas não posso prendê-lo por causa disso!
Portanto, em termos gerais, ambos os argumentos, tanto o de conservadores crentes devotos como Julio Severo, quanto os dos ardorosos defensores da causa gay, incentivadores do projeto de Fátima Cleide, estão equivocados não em seu princípio, mas sim em seus desdobramentos. Uma coisa é manifestar sua opinião teólogica face o texto das escrituras sagradas, interpretando como prática pecaminosa e reprovável a homossexualidade, outra é estimular e aprofundar a cultura do ódio ao diferente, insuflando a discriminação, no momento em que um escritor evangélico defende que homossexuais sejam detectados nos locais de trabalho, nas escolas ou na própria igreja. Voltar a esse tipo de pensamento é legitimar técnicas como a da Gestapo, a polícia política nazista, que como sua política discriminatória e pseudo-cristã, perseguia igualmente ciganos, judeus e homossexuais. O Estado, por ter uma constituição democrática, estaria a salvo das perseguições por orientação de gênero ou preferência sexual, mas e as igrejas? Será que nelas também, por se aterem a uma ordem constitucional que proíbe a discriminação, apesar de garantidora da liberdade religiosa, não deveria ser coibido o preconceito?
Simultaneamente, não poderia apoiar o estímulo à criminalização de condutas que expusessem a desaprovação à práticas homossexuais, tão e simplesmente por uma opção de crença. Se sou defensor de um abolicionismo penal e de um Estado Penal Mínimo na resolução de conflitos sociais, em que necessariamente questões de divergência de opinião não virem caso de polícia, entendo que essa mesma Constituição democrática permite o debate entre diferentes, sem que um tenha que colocar na cadeia o outro. Nem na igreja o debate sobre a homossexualidade está resolvido, face a recente crise da Igreja Anglicana e posterior racha, com a ruptura por exemplo, de um mais importantes e geniais críticos da religião e teólogos do país, o bispo Robinson Cavalcanti, com as posições adotadas por essa igreja em relação à ordenação de bispos assumidamente homossexuais.
O problema é que a discussão sobre a orientação sexual de cada um acaba por ser deformada pelo enraizamento das paixões que envolvem tanto aqueles que abraçam uma religião, quanto aqueles que querem ver tão e simplesmente sua opção de vida ser reconhecida e livre de discriminações. Preconceitos sempre haverão de toda parte, pois a crítica, a autocrítica e a divergência de opiniões é típica do gênero humano. Para aqueles que acreditam num Deus superior, único e absoluto, somente a Ele cabe a detenção das verdades eternas e o entendimento que só é Dele, um entendimento incompreensível para o saber dos homens. Resta apenas interpretar e localizar as pistas que Deus colocou a cada um em seu percurso de vida, e cada qual saber lidar melhor com suas opções e com os caminhos que lhe foram oferecidos durante sua existência.
Recordo-me certa vez, de um fato interessante, quando estava sentado em uma mesa, rodeado de pessoas tanto hetero quanto homossexuais, durante a folga de uma campanha eleitoral do PT, quando me deparei com o discurso de um jovem petista engajado, gay assumido e militante da causa homossexual, que dizia se sentir muito discriminado pela igreja em geral e chegava a questionar os cristãos e o cristianismo, uma vez que sempre que tentava se aproximar dessas pessoas, era rechaçado e taxado com o rótulo de gay, pervertido, cria do demônio ou pecador. Eu disse a ele que o mesmo sentimento de exclusão a que ele se referia, era o sentimento sentido por muitas pessoas excluídas, mendigos, pobres, bêbados, prostitutas, cegos, mancos, criminosos, e todas aqueles à margem da sociedade, consolados por um Cristo que não se melindrava de sentar ao lado e compartilhar a mesa com essas pessoas.
Em João 4, vérsículos 7 a 26, Jesus em peregrinação com seus apóstolos vai até a região da Samaria, lugar onde Jacó viveu, e lá cansado da viagem e com sede, dirige-se até um poço, onde avista uma mulher samaritana. Jesus pede a mulher que lhe dê água, e a mulher se surpreende de como é que um judeu poderia estar conversando com uma samaritana, uma vez que era público que judeus e samaritanos não se davam bem. Jesus então fala que quem conhece o dom de Deus poderia pedir, pois Deus concederia água viva. Depois, Jesus pede que a mulher chame seu marido, eis que ela responde que não tem marido. Jesus sabia que aquela mulher já teve cinco esposos, sendo que o último com quem ela vivia não era casado com ela, mas apenas seu consorte. Mesmo assim, é através de uma mulher samaritana ( de um povo hostil ao povo judeu de Jesus) e amasiada, que Jesus proclama seu evangelho, fazendo com que muitos samaritanos passassem a crer em suas palavras. Não é à toa que seus discípulos, ao verem Jesus conversando com aquela mulher de "vida duvidosa", ficam surpresos por causa do preconceito, mas mesmo assim se calam. Quem dera que muitos crentes hoje preconceituosos, nessas horas, também fossem arrebatados por Cristo e ficassem em muda sabedoria!
Em Cafarnaum, Jesus também acolhe ao pedido de um centurião, em Lucas 7, versículos 2 a 9. O centurião pede com emoção a Jesus que cure um servo que estimava muito, que estava à beira da morte.Porém, pede envergonhado que Jesus não entre em sua casa, pois não se sentia digno de um encontro com Jesus debaixo daquele teto. Pergunta-se aqui porque aquele homem estava tão envergonhado e não queria que Jesus entrasse. Porém, Jesus não apenas cura o servo, restabelecendo sua saúde, como anuncia para a multidão, ao falar do centurião, que nunca tinha visto antes um homem com tanta fé. É justamente nas pessoas que menos esperamos, e nas quais depositamos algum preconceito que as envergonha ou as exclui, que nas horas mais difíceis demonstram uma fé genuína e um amor a Deus. Por que será que pessoas como orientações sexuais diversas, seriam diferentes? Será que essas pessoas também não teriam fé?
Contando tudo isso ao jovem homossexual revoltado, fiz com que ele visse que o Deus punitivo, encontrado no discurso raivoso dos crentes que o repudiaram, não correspondia necessariamente ao Deus ensinado por Jesus em suas pregações. Na verdade Cristo foi, senão o maior, um dos maiores pregadores do respeito à diversidade e a tolerância, acolhendo a todos, sem fazer distinções. Quando Paulo dirige-se em suas cartas a igreja de Corinto, alertando sobre o perigo da imoralidade em 1 Coríntios 12, versículos 18 a 20, ou quando fala especificamente de práticas homoeróticas, ao tratar da ira de Deus sobre a humanidade em Romanos 1, versículos 26 e 27, ele trata justamente tanto da história de Israel e dos erros cometidos pelo povo judeu, como da realidade decadente de imoralidade e promiscuidade sexual de Roma, dirigindo seu texto a típicas civilizações em estado de decomposição social e moral. Ao criticar os pederastas (termo empregado à época), Paulo se refere não apenas ao homossexualismo, mas a todo tipo de perversão ou relação sexual onde o amor ao próximo, seguido do sexo aliado ao compromisso afetivo, não é realizado. A degeneração moral através da prostituição da carne, o sexo com fins meramente egoístas e mesquinhos afim de satisfazer depravações sexuais como o estupro, a pedofilia ou a necrofilia, são práticas que são plenamente reconhecíveis e criticáveis até hoje, independente da opção sexual ser hetero ou homo. No começo do capítulo bíblico, Paulo trata da imoralidade dentro do tema da injustiça dos homens, que pela sua natureza corrompida a tudo destroem, inclusive a si mesmos, pois entregues a seus próprios desejos ( os sexuais, inclusive) geram todo tipo de ganância, exploração, violência e desagregação. Quem irá duvidar disso? Quem irá questionar como punível a prostituição infanto-juvenil, o tráfico de escravas brancas ou a exploração sexual de adultos, homens ou mulheres?
Mas o que dizer de homens e mulheres com coração sensato, nos dizeres de Paulo, que independente das convenções, decidem dirigir-se amorosamente a seu próximo, independente de gênero, e resolvem consentidamente construir uma vida em comum, com suporte e afeto recíprocos? O que dizer de casais homossexuais que vivem juntos toda uma vida, envelhecendo com compromisso de fidelidade, e quando um deles falece, nem sequer ao outro é dado o direito de opinar sobre a herança? Ou de casais do mesmo sexo que adotam ou resgatam da morte, do frio, da violência e da miséria uma criança abandonada, dando-lhe carinho, atenção, proteção e uma formação, propiciando seu desenvolvimento digno, onde, comprovadamente não existem evidências científicas e psicológicas de que tal criação irá comprometer seu crescimento moral, emocional ou interferir em sua opção sexual? Devemos deixar pessoas sem direitos? Deixar crianças sem lares? Deixar que o medo ou o peso de nossos preconceitos interfira em nosso julgamento, a ponto de nos acharmos os donos da verdade bíblica, e assim, de forma sectária e legalista, apenas atirarmos a pedra como se não tívessemos nenhum pecado? Creio que é muito perigoso pensar assim, e mais uma vez voltando-me para outro texto, não o bíblico, mas o constitucional, creio que uma sociedade democrática não é essa onde apenas os "salvos" tenham razão, e aos "perdidos" só reste a morte e as chamas do inferno.
"Não julgem, para que vocês não sejam julgados". É assim que Jesus se pronuncia em Mateus 7. Deus age de formas misteriosas, e assim como é dito no Antigo Testamento em Provérbios 2: "todos os caminhos do homem lhe parecem puros, mas o Senhor avalia o espírito". Desta forma, sejamos sensatos ao não propagar o ódio, a intolerância e a violência gratuita ao promovermos a exclusão de homossexuais, como quer o irmão evangélico Julio Severo, através da discriminação nas escolas, ruas ou locais de trabalho, e nem sejamos tontos ou tolos de achar que pela criminalização a homofobia irá deixar de existir, acreditando que é penalizando criminalmente os autores de discriminação ou preconceito, que as conquistas da comunidade homossexual serão atingidas. Ainda em Provérbios, no capítulo 11 vemos que: " o Senhor repudia balanças desonestas, mas os pesos exatos lhe dão prazer". Que tenhamos a devida sabedoria para pesar nossas diferenças sem perder nossa dignidade, nem humildade. Que Deus nos abençoe!