quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

HQs: POR QUE "WATCHMEN" É TÃO BOM?

Mediante o surto entre os fãs de quadrinhos, provocado pela versão para os cinemas em 2009 da obra "Watchmen", do escritor Alan Moore, corri até as livrarias e fiquei perambulando por várias, até conseguir obter a obra completa em quadrinhos, deleitando-me com densas histórias que não via desde outros excelentes trabalhos do escritor britânico, tais como: "Do Inferno", "Monstro do Pântano", "A Liga Extraordinária", "Supremo" e "V-de Vingança". Todos esses livros, diga-se de passagem, infinitamente superiores às suas versões vistas no cinema.

Antes de comentar propriamente a obra mais importante de Moore, vale aqui tecer uma reflexão sobre o papel das histórias em quadrinhos na cultura moderna e popular. Dizem que o hábito de ler gibis começa na infância, como uma forma de aprendizado estimulado pelos pais, para que os filhos desenvolvam o saudável gosto pela leitura. Acho que seja mais do que isso! Ler gibis, para muitos como eu, não é apenas perpetuar um hábito de infância, mas sim uma verdadeira paixão e especial prazer obtido com um tipo de leitura, que conjuga a riqueza das imagens com a profundidade de textos, que, de infantis, não tem nada. Vale salientar que para alguns, a paixão pelos gibis é passada pela tradição, de pai para filho, como foi no meu caso, visto que me interessei pelas aventuras do Capitão América, Homem-Aranha, Hulk, Superman e do Batman, muitas vezes estimulado por meu pai, que sempre foi fã de quadrinhos, tendo lido na década de 50 muitos gibis clássicos do Flash Gordon, Tarzan, Fantasma e Mandrake, além de toda linha de histórias de faroeste, principalmente de Tex e do Zorro.

Recordo-me que até hoje, todas as vezes em que estou (bem) acompanhado de uma namorada ou paquera, ela se ri quando, dentre meus diversos gostos literários, eu me animo todo como um moleque, ao chegar na prateleira de histórias em quadrinhos, seja em livrarias ou bancas de jornal, folheando com esmero aquelas páginas e páginas de pura literatura fantasiosa. Dizem que eu não tinha perdido meu lado criança ao gostar daquele tipo de leitura, e, entendem ( para todo não iniciado no universo dos quadrinhos) que ler HQs seria coisa de criança. Ledo engano!

As histórias em quadrinhos hoje ( ou comics, se preferir) correspondem a uma fatia significativa do mercado literário mundial. Tanto isto é verdade que, hoje, é tão ou mais comum ver grandes edições encadernadas da Marvel e da DC estrearem lado a lado, nas vitrines das lojas e livrarias, com grandes edições de best-sellers ou novidades do mercado editorial, como as obras de Paulo Coelho, os livros de Dan Brown, ou os recorrentes manuais de autoajuda. Isto se deu por uma evolução na concepção de gibis e desenvolvimento dos enredos nas histórias em quadrinhos, numa revolução iniciada na década de 80, tendo como precursores autores hoje consagrados e admirados, não só como roteiristas de quadrinhos, mas sim como escritores famosos e premiados, tais como: Neil Gailman ( da série "Sandman"), Frank Miller (autor de "Sin City"), e o próprio Alan Moore.

É verdade que a nova dimensão adulta das histórias em quadrinhos teve seus precursores, como Neil Adams, com suas histórias do Batman, além de Dick Giordano e outros na década de 70. Mas foi na década de 80, onde me recordo, de saudosa memória, que um escritor baixinho e magricela contratado pela Marvel chamado Frank Miller, foi o responsável por um das maiores revoluções na história desse gênero de literatura, ao se envolver numa arriscada empreitada, a de lançar uma ousada e bem sucedida obra intitulada: "Batman-O Cavaleiro das Trevas". Miller já havia feito "o diabo" nas estórias de outro personagem da Marvel, que sempre admirei além do Homem-Aranha, que era o Demolidor. Não era apenas o estilo de desenhar de Miller que me encantava, mas sim a profundidade e a forte marca existencial que ele desenvolvia no roteiro de suas histórias. No "Cavaleiro das Trevas", o desenhista-escritor Frank Miller iria transformar de vez o gênero das HQs, criando os graphic novels ( ou "romances gráficos") se preferir. Verdadeiras sagas, romances, dramas humanos e adultos, valendo-se de personagens encapuzados ou superpoderosos, em histórias transformadas em desenhos, onde o desenrolar da trama se dava por meio da leitura de balões e por imagens, que por muitas vezes, traduziam mais do que as palavras. Ler histórias em quadrinhos, a partir daquela época, significava não só dar asas à imaginação e se encantar com seus personagens fantásticos, mas também iniciar-se no rumo da literatura adulta, com tramas ágeis, modernas e divagações existenciais profundamente maduras e atuais. Miller e outros de sua época abriram, inclusive, as portas do cinema para os quadrinhos, visto que foi através do ritmo cinematográfico em que passavam a ser escritas as estórias que, logo em breve, muitos dos lendários super-heróis da Marvel e da DC iriam parar nas telas grandes, gerando famosas e bem sucedidas franquias tais quais: "Batman Begins" e o recente "Batman-O Cavaleiros das Trevas" (considerado um dos melhores filmes de super-herói de todos os tempos, e o primeiro a ter um ator indicado postumamente ao Oscar), Homem-Aranha (1,2 e 3), Superman-o Retorno e a série X-Men.

Foi justamente nessa época, que o escritor e roteirista de quadrinhos Alan Moore escreveu talvez sua maior e mais desafiadora obra, a mini-série "Watchmen". Para quem não conhece os trabalhos de "Sir" Moore, esse carrancudo, barbudo e cabeludo escritor, nascido em 1953, em Northampton, Inglaterra, é especialista em recriar histórias de super-heróis, sobretudo aqueles mais clássicos (vide a homenagem que ele fez as estórias do Super-Homem na série "Supremo"), dando-lhes uma injeção de realidade, preenchendo-os dos dramas humanos de pessoas comuns e reais. Além disso, Moore é um cara altamente politizado, subversivo por assim dizer, tendo sido um profundo crítico e um dos principais inimigos no meio literário, do governo de direita da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do governo Reagan, nos EUA, na década de oitenta. Moore consegue passar seu estilo meio hippie e apocalíptico para suas estórias, tendo sido acompanhado do excelente desenhista Dave Gibbons, para retratar o que seria para alguns, o verdadeiro Novo Testamento dos Quadrinhos: a série "Watchmen".

Mas por que para seus devotos fãs, a saga dos "homens-relógio" em "Watchmen" é tão importante, a ponto de alguns críticos separarem as HQs em AW (antes de "Watchmen") ou DW ("Depois de Watchmen")? Na verdade a estória dessa saga começa numa disputa pelo mercado editorial dos quadrinhos, quando a DC publica pelas mãos do desenhista George Perez e roteiro de Marv Wolfman, uma outra obra revolucionária, que tinha a intenção de rever o conceito de super-heróis, na epopéia chamada "Crise nas Infinitas Terras"( relançada recentemente em edição encadernada pela Editora Panini, e que li a versão original na íntegra, na década de 80). Enquanto Perez estava ocupado matando e ressuscitando super-heróis, coube a Moore escrever, na época sem maiores pretensões, uma estória que se passava numa realidade alternativa, onde a "direita" (leia-se hoje os neoliberais) havia obtido o poder em todo o mundo, os EUA haviam ganho a Guerra do Vietnam e Richard Nixon continuava sendo o presidente da nação norte-americana, em plenos anos 80.

É dentro dessa realidade que a estória começa, quando é assassinado O Comediante. Um ex-herói fantasiado, de caráter duvidoso, que na meia-idade, assolado pelo álcool e pela culpa, é arremessado do décimo andar do prédio onde morava, vindo a estatelar no chão. Naturalmente, como em todo conto policial, ninguém sabe quem cometeu o crime e nem suas motivações. Mas é em meio a paranoia de que outros ex-heróis possam vir a ser mortos que Rorschac, outro herói encapuzado, decide investigar o crime, buscando reagrupar seu antigo grupo, os Watchmen, agora todos aposentados em função de um decreto governamental, que declarou ilegal todo e qualquer grupo ou associação de vigilantes mascarados.

É justamente pelo título da obra, que Alan Moore desconstrói o conceito de super-heróis, fazendo aqui uma crítica dos famosos super grupos, exortados nas histórias em quadrinhos tradicionais (tais como a Liga da Justiça, os Vingadores ou a Sociedade da Justiça). Em "Watchmen"(homens-relógio ou vigilantes), cada personagem do grupo tem a sua história e o seu perfil psicológico detalhadamente traçados. Sabemos na estória de Moore, por exemplo, que antes dos Watchmen, havia os Minute Man (homens-minuto), grupo da década de 40 também formado pelo Comediante quando jovem, e por Sally Júpiter, a primeira Espectral, que vão se envolver num trágico acontecimento que vai marcar a história do grupo para sempre. No decorrer da história o leitor começa a descobrir mais dos traços do caráter e da história do Comediante, sabendo por exemplo, de como se deu o grau de envolvimento deste personagem em fatos como a Guerra do Vietnam, ou como este, de super-herói tornou-se uma espécie de carrasco, um agente da repressão estatal, sem moralidade, que não faz feio a nenhum torturador das antigas ditaduras sul-americanas.

Também na história são enfocados outros personagens, como o Coruja, cujo próprio nome confessa o isolamento, a insegurança e o retraímento de seu personagem. Ozymandias, personagem baseado num ser mitológico, que tal como Bruce Wayne (alterego do Batman) abandona a luta contra o crime, tornando-se um famoso milionário, responsável por obras filantrópicas. Conhecemos no gibi a segunda Espectral, Laurie, filha de Sally Júpiter, que se tornará esposa do Doutor Manhattan, o personagem mais enigmático, mais filosófico e mais poderoso do grupo, e de seu envolvimento extraconjugal com o personagem Coruja.

Sobre o Doutor Manhattan, sua estória é contada no segundo volume da obra, resumindo-se que ele era, na verdade, Jon Osterman, um aprendiz de relojoeiro na infância que se torna cientista, e num desastrado acidente nuclear em seu laboratório de pesquisas, é trancafiado numa sala numa experiência, e é literalmente desintegrado por um canhão de partículas. Ocorre que mesmo após ter seu corpo destruído, a consciência de Osterman ainda persiste, e através dos poderes obtidos pela experiência nuclear começa a reconstruir seu corpo, tornando-se o Doutor Manhattan. Este personagem, diferente dos outros, é o único na verdade com superpoderes, já que os outros componenentes do grupo só possuem treinamento de luta, equipamentos e habilidades avançadas.

O drama que persegue o Doutor Manhattan é que acaba sendo consumido pelo seu próprio senso de lógica e racionalidade, como uma metáfora que Moore faz da própria ciência moderna, uma vez que o personagem, a partir do acidente que sofreu, torna-se uma criatura mais avançada, e, em contrapartida, mais distante fisicamente e psicologicamente. Para Manhattan, o mundo não passa de uma reunião de partículas subatômicas, e a cada ano, ele acaba cada vez mais se afastando da espécie humana, desligando-se das coisas do mundo, por não ver mais sentido na manutenção da raça humana. Seu tédio, desilusão e isolamento serão fundamentais para o desenvolvimento da trama, à medida que o grau de tensão na história vai aumentando, e no futuro será necessária sua intervenção, para que ocorra o climax da saga de Moore.

Todos os elementos de uma novela adulta estão em Watchmen: mistérios, intrigas, traição, paixão, revolta, sexo e violência, muita violência. Porém, fugindo dos clichês do gênero, a obra consegue ser uma fábula pós-moderna, quando revisita a estória de heróis, correlacionando o histórico dos vigilantes mascarados com o histórico dos últimos acontecimentos do século XX no pós-guerra, como a Guerra Fria, a contracultura, e o apogeu do neoliberalismo no fim do século. Além disso, a trama de Moore passa longe do fio condutor maniqueísta da luta dos mocinhos contra os bandidos. Na verdade, em "Watchmen", os personagens que compõem o grupo de vigilantes mascarados e sua contraparte no mundo do crime, possuem ambos todas as ambiguidades, contradições e conflitos típicos de uma pessoa comum. O personagem Rorschach, e seu alterego Walter Kovacs, espancado pela mãe drogada e prostituta quando era criança, e educado num reformatório, até se tornar um justiceiro na noite da cidade, agredindo e matando criminosos de rua, é um lapidar ingrediente das personalidades atormentadas dos protagonistas, exploradas por Alan Moore, em sua fábula sobre uma "liga da justiça de desequilibrados". Talvez o grande mérito de "Watchmen" na década de oitenta, foi ter justamente quebrado com aquele paradigma idílico do herói, explorado por tantos anos nos gibis da Marvel e da DC. Os heróis mascarados são agora anti-heróis, ambíguos em sua natureza e em propósitos, que participam da trama humana da vida, exercitando ao máximo suas virtudes, seus atributos positivos, e também seus vícios, os piores atributos de suas personalidades.

Assim, como diz meu colega, estudante do Doutorado em Teologia, professor Iuri Reblin, autor do instigante livro: " Para o Alto e Avante-uma análise do universo criativo dos super-heróis"(Ed. Asterisco, 2008), os super-heróis são definidos na cultura de massa contemporãnea como uma simbologia de um corpo ideal ou real, cuja limitação do corpo físico engendra uma representação cultural dos super-heróis, como fenômeno que dá resposta aos desejos, saudades, desafios impostos pelo mundo e pela sociedade, e o seu sonho de superá-los. Já os heróis de "Watchmen", aparentemente, representam esse mito da superação do corpo, para depois voltar à realidade dos corpos humanos, à medida que os heróis da trama seguem o caminho inverso do traçado, originalmente, nas clássicas tramas de HQs. Ao invés de deixarem de ser simples humanos e tornarem-se seres fantásticos, os personagens da obra de Moore fazem o caminho contrário, através de suas inquietações e conflitos internos. Eles já são poderosos, já são conhecidos, já são famosos, mas eles se humanizam e passam a se parecer mais com as pessoas comuns à medida que se deparam com seus próprios medos. O personagem do Comediante, e o mistério que este engendra, são o exemplo cabal do retorno a esse homem limitado e angustiado, que representa o homem da sociedade pós-moderna.

Resta saber se o filme de Zack Snider, anunciado com estardalhaço agora para 2009, e com seu trailler bombando no Youtube, será fiel, ou a menos semelhante, com a sofisticada trama elaborada por Alan Moore nos quadrinhos. Como se sabe, o escritor de quadrinhos bardo é notoriamente avesso a toda e qualquer adaptação de sua obra para os cinemas. O filme "Watchmen" carrega consigo o profundo desafio de explorar toda a complexidade carregada na clássica graphic novel oitentista. Se conseguir, poderemos estar diante de um ótimo filme e possivelmente da melhor adaptação cinematográfica de gibis da história. Acho muito difícil!

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