quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

70 ANOS da II GUERRA MUNDIAL: A "Culpa Alemã" revisitada nos cinemas

"Eita povo culpado é essa nação alemã!" Foi assim que pensei num primeiro momento após assistir ao recente festival de filmes que revisitam a II Guerra Mundial, agora nos 70 anos de aniversário do início do conflito. A diferença é que os filmes recentemente lançados não falam mais do esforço de guerra dos Aliados, e nem propriamente do sofrimento judeu no holocausto, dos campos de concentração, mas sim dos sentimentos de quem viveu do outro lado do conflito, da nação que propiciou a ascensão de Hitler e do nazismo e legitimou que tudo isso acontecessse; ou seja, estamos falando do próprio povo alemão.

É tempo agora de falar tanto do papel do cidadão médio, do alemão comum, que no fim da década de 30 e começo da de 40 do século passado, correspondia ao inimigo no jargão bélico da época, e da função da então desconhecida "resistência alemã" à supremacia nazista. Filmes como: "Um Homem Bom" (com o ator Viggo Mortensen, interpretando um professor que se alia ao nazismo); "O Menino do Pijama Listrado" ( que trata da história do filho pequeno de um oficial nazista, que vivendo ao lado de um campo de concentração, faz amizade com um menino judeu prisioneiro); "O Leitor" (estória de um estudante adolescente alemão que se envolve amorosamente com mulher mais velha, na Berlim do Pós-Guerra, ex-carcereira de um campo de concentração, que acaba sendo acusada de crimes contra a humanidade) e o último "Operação Valquíria" ( com o astro Tom Cruise, interpretando ninguém menos que um dos heróis nacionais da Alemanha, o coronel Claus Stauffenberg, responsável por um mal sucedido atentado contra Hitler); refletem a necessidade atual do povo alemão de prestar contas à história, limpando de vez seu nome do grau de responsabilidade, pelo surgimento de um dos regimes políticos mais atrozes do planeta, e, reflete também, especialmente, a gana mercadológica dos estúdios de cinema em lucrar com o episódio.

Nunca antes se havia feito tantos filmes, exibidos em sequência, por grandes estúdios em circuito internacional, falando do mesma tema, às vésperas do aniversário de um grande conflito mundial. Isto me faz recordar episódio há pouco lembrado que me ocorreu há mais de dez anos, quando vivia em Natal (cidade brasileira com destaque especial na II Guerra Mundial), ao sair com um amigo meu que estava namorando uma turista alemã. Lembro-me do quanto ele estava empolgado com o novo affair germãnico, pensando até em casamento, feliz por aprender o idioma e satisfeito com os rumos de seu relacionamento, pois além de um simples flerte de verão ter dado certo (já havia seis meses que estavam namorando), e além da moça ter ficado no Brasil, ainda havia trazido os pais dela para conhecer o afortunado amigo. Porém, ele me disse que enquanto conversava com ela, tratando dos preparativos da chegada dos novos sogros, a única limitação que ele poderia ter nos papos com os velhos, era não falar da II Guerra Mundial. Ele me explicou que ao tratar do assunto com a namorada, ela havia dito a ele, que os fatos ocorridos no período ainda eram muito traumatizantes para seu povo, e, especialmente para sua família, visto que tanto seus pais quanto avós haviam participado ativamente daquela época. Os avós dela eram eleitores do partido nazista, e ela tinha um tio que tinha morrido na guerra, defendendo a Alemanha, tendo sido um militante integrante da juventude hitlerista quando moleque.

De fato, para nós brasileiros, que pouco sabemos o que se passava do lado de lá durante a guerra, seja pelos livros de história, seja pelo que é contado pelos (poucos) sobreviventes restantes do período, apenas estávamos acostumados a pintar os nazistas como os "demônios" que ajudamos a derrotar com a heróica participação da FEB em Monte Castelo, ou através da visão maniqueísta das centenas de filmes de guerra hollywoodianos. Foi muito tempo depois que eu comecei a me perguntar: "Como é aquele povo pode ter permitido isso?", ou me indagava se eles eram tão ruins assim, tão perversos, tão arrogantes, tão recalcados, a ponto de colocar um lunático nacionalista e antissemita no poder, e proporcionar horrores tão dantescos como o massacre de judeus, negros, doentes, velhos, ciganos, homossexuais, comunistas e prostitutas, que faria corar Belzebu, e por fim ter colocado a figura de Adolf Hitler como um dos maiores anticristos do século.

O termo "banalidade do mal" foi cunhado pela filósofa judia Hannah Arendt, exatamente para demonstrar esse desconcertante sentimento de indiferença diante da tragédia humana, que se notabiliza pela legitimação social de regimes autoritários. Hoje em dia, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, prefere empregar a expressão "fascismo social", para denunciar nossa indiferença diante da desigualdade. De qualquer forma, é necessário tão somente compreender o sentido desses termos e expressões para ser possível, quem sabe, se familiarizar com o conceito introduzido por Arendt, que talvez explique em parte as razões do comportamento do povo alemão durante os tétricos episódios da II Guerra Mundial, e justifique posteriormente seu inevitável sentimento de culpa.

Em "Eichmann em Jerusalém", Hannah Arendt narra suas reflexões sobre o julgamento pelo Tribunal de Nuremberg do criminoso de guerra nazista Adolf Eichmann, acusado, condenado, e posteriormente enforcado por supostos crimes contra a humanidade na Segunda Guerra. Foi neste livro que ela empregou pela primeira vez a famosa expressão que a tornaria famosa, ao fazer, durante as sessões de julgamento do criminoso nazista, uma análise do indivíduo Eichmann. Este, ao ser interrogado, não demonstrou ser um homem perverso, cruel, e nem mesmo antissemita. Eichmann foi condenado e encontrou a morte na execução pela forca, porque agiu de forma indiferente, "além do bem e do mal"( se parodiarmos Nietzche), num metódico cumprimento de ordens, sem avaliar as consequências. Destroçado pela imprensa, Eichmann não era, segundo Arendt, um indivíduo mau, apesar de seus atos não terem justificativa e ele não ser inocente. Na verdade, o criminoso nazista era muito mais um burocrata, de um serviço burocrático, cuja uma das funções era exterminar judeus.

Pensando desta forma, fica mais fácil entender as motivações de um povo, principalmente de uma série de funcionários, soldados e burocratas do governo alemão, que galgaram postos durante a ascensão do nazismo e no meio do holocausto, com o genocídio de judeus, tão e simplesmente movidos pelos ideais de mobilização social e êxito profissional, como se fossem funcionários de uma empresa. Quem não se choca hoje com aqueles executivos ou executivas engravatados, de classe média alta, do alto de seus cursos de MBA e ocupando cargos de gerência em empresas privadas, que demitem subalternos ou humilham subordinados, sem dó nem piedade, tão somente para auxiliar a alegada produtividade da empresa, ou a maximização de custos e resultados? Não seriam esses os nossos nazistas?

No filme de Stephen Daldry: "O Leitor", a personagem Hannah Schimitt, vivida pela atriz inglesa Kate Winslet, vive o mesmo dilema de Eichmann. A personagem, ex-carcereira da SS no período da II Guerra Mundial, em um presídio feminino de cativas judias, vai demonstrar durante seu julgamento toda a lógica burocrática que orientou a racionalidade dos atos de um criminoso de guerra como Adolfo Eichmann. O horror é traduzido pela indiferença, pela banalização da vida humana, sacrificadas em prol da relação custo X benefício da burocracia e do poder estatal, e através dessa atônita constatação passamos a entender melhor o que legitimou a ascensão de Hitler em seu II Reich. Segundo Maquiavel, na feitura de "O Príncipe", os atos morais é que necessitam de uma justificação moral, já os atos políticos não. A política é movida por resultados, e não por um fim em si mesmo, como uma intervenção moral. Moral e política estão doravante, dissociados, e foi em prol de resultados, ou seja, pelo progresso almejado pelo discurso nacionalista do Partido Nacional-Socialista Alemão, proferido por um ex-cabo e pintor fracassado, que o povo alemão deu carta branca aos nazistas para que chegassem ao poder. Eram as promessas de sucesso, de prosperidade, de resgate da identidade coletiva de um povo, de reerguimento de uma sociedade atolada na miséria, destruída economicamente pela I Guerra Mundial, que Hitler e seus comparsas puderam então implementar sua política da "solução final", promovendo o armagedon e aniquilando milhões de seres vivos. Nada muito diferente do que eleger um governo populista ou legitimar uma ditadura sul-americana. Afinal de contas, George W. Bush também foi eleito pelo voto popular!

Fico me perguntando quantos intelectuais, funcionários públicos, estudantes, ou tão e simplesmente gente atrás de emprego e dinheiro, ficou seduzida pelo discurso do governo de Hitler no poder, e se empreendeu no esforço de guerra, trabalhando em fábricas de armamentos, prestando o serviço militar, ocupando cargos na burocracia, prestando concursos para ingressar na Gestapo ou na SS, trabalhando como carcereiros, ou apenas se ocupando de servir cafézinho para os figurões do regime nazista. Hoje, falar para um alemão contemporâneo ou para um descendente de alemães, que um de seus ancestrais colaborou para o regime hitlerista é o mesmo que provocar briga com o sujeito, ou, no mínimo, tocar num assunto delicado e constrangedor, onde muitos preferem ficar calados, no silêncio obsequioso dos mais velhos. É difícil conviver com a experiência nazista porque é difícil viver com a experiência do holocausto, eu sei, mas o mais difícil talvez seja conviver com a "consciência do absurdo"(nos dizeres de Albert Camus), que é o de descobrir que os caminhos traçados com tanta dedicação e esforço, na verdade não faziam o menor sentido. Dura é a constatação do erro, mas o pior é a reflexão sobre a falta de sentido. Que sentido ficou para o povo alemão depois que Dresden foi bombardeada, seu território inteiro foi destruído, milhares de seus filhos e filhas foram mortos, e seu país foi por décadas, durante a Guerra Fria, dividido em dois, entre duas potências antagônicas (EUA e URSS)? Creio que os alemães, no seu catolicismo ou no seu luteranismo, deram graças a Deus quando pelas abençoadas pernas de Franz Beckenbauer, e depois pelo talento de craques como Vohler, Matthaus e Balack, a Alemanha deixou de ser conhecida apenas como a terra do nazismo, mas também como país do futebol, após suas vitórias e finais nas Copas do Mundo.

Tive a oportunidade de conhecer melhor o povo alemão, ao menos pela visão de seus descendentes, com minha estada no Rio Grande do Sul, especialmente em cidades como São Leopoldo e Santa Cruz, terras de imigração alemã. Aprendi a gostar de sua cultura, sua culinária, seu idioma ( que inclusive quero aprender), suas festas populares, sua cerveja (regada em muitos Oktoberfests), sua doutrina cristã-luterana, e até sua música, curtindo o heavy-metal da banda Rammstein. Confesso que não foi só a beleza da alvura leitosa e dos cabelos loiros das belas valquírias alemãs que me conquistou, mas também sua cordialidade pitoresca, seu jeito aparentemente turrão, que na verdade desenham em seu interior pessoas calorosas, amistosas e com muito senso de humor, e, é claro, sua vasta literatura, que vai desde um clássico Goethe, meus livros em Direito de autores alemães, até as obras de Thomas Mann e outros interessantíssimo autores.

Agora, só me resta posicionar-me dentro desse sentimento de culpa a que aludi e ainda considero latente naquele povo, dizendo que eles não tem hoje, que se envergonhar do triste período, em que ficaram na história por ter galgado ao poder um ditador perverso e um tirano. Na verdade, no Brasil, nós tivemos aqui nossa parcela de culpa, e boa parte da classe média se ressente hoje de ter favorecido, em seu conservadorismo a ascensão dos militares em 64, ou a eleição de Fernando Collor em 89. O que dizer dos paulistanos iludidos pelo malufismo, que mesmo sabedores do caráter duvidoso de seu candidato ( além de seus inúmeros processos na Justiça), legitimaram não apenas a entrada de Maluf na prefeitura paulista, como também deixaram que seu assecla, Celso Pitta, desgraçasse a cidade, comprometendo os cofres públicos e autoestima da metrópole, com consequências que se fazem sentir até hoje? E quanto aos argentinos e chilenos, que se lamentam e até hoje tentam se recompor de seu passado, prestando contas à história e as suas consciências, até hoje tentando colocar na cadeia os líderes militares que o povo mesmo apoiou e auxiliou na tomada de poder? Não, não! Na verdade não somos tão diferentes assim do povo alemão, e também temos nossas culpas coletivas, que tentamos, a duras penas, conciliar. Se não pecamos pelo excesso, pecamos pela falta de discernimento ou de consciência política, nas escolhas que fizemos de quem seriam nossos governantes, e de que rumo tomaria o nosso Estado.

Agora, alemãozada amiga, vocês podem descansar em paz! Podem dormir sossegados!

2 comentários:

  1. Sou casada com um magistrado alemão que trabalha há trinta anos com as indenizações do Estado às vítimas do nazismo. Talvez por essa proximidade e por ter visitado Berlin, eu conheça esse outro lado. O sentimento é um misto de culpa e vergonha. A um alemão eu disse que o país é pura cultura, e que deveriam se orgulhar muito. Sua resposta, no entanto, referindo-se à guerra, foi que não tinha nada que se orgulhar. Mas embora Hitler ascendesse ao poder pelas mãos do povo é verdade, também, que houve resistência de pequenos grupos, famílias e igrejas que abrigavam os perseguidos. Tive acesso à história da Ilha dos Museus de Berlin. Os esforços daqueles que nela trabalhavam para esconder peças dos acervos da pilhagem nazista é realmente comovente. Os alemães não esquecem a guerra, não querem esquecer. Em Berlin, se esbarra em monumentos, memoriais, exposições, peças de teatro e documentários sobre a guerra, o nazismo e o holocausto. Mas nada do que fazem parece ser suficiente para redimi-los. E o pior, o nazismo ainda está bem vivo no país, para o constrangimento da maioria.

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    1. Uwerita, meu nome é Fabiano e estou pesquisando sobre o assunto. Fiquei muito interessado no seu relato. Podemos conversar via e-mail ou Facebook? Meu e-mail: srtizzo@bol.com.br

      Agradeço pelo retorno.

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Até quando teremos que ver isso?