Recentemente voltei a reler Albert Camus. Na verdade a própria história desse pensador por si só já me despertava encanto, seja pela ausência de uma paradoxal e onipresente presença paterna (perdeu o pai na I Guerra), até os ataques de tuberculose que o impossibilitaram de fazer as coisas que mais gostava e ceifariam sua vida (fora os cigarros que insistia em fumar), se as rodas do destino não tivessem entrado em seu caminho, desviando seu carro para um trágico acidente automobilístico, encerrando seus 46 anos de uma vida singular. Tudo na carreira de Camus me fez pensar que ele "era o cara": desde a carreira como jornalista, romancista, militante político e polemista, até a incerteza, nihilismo, a indiferença perante a iminência da morte, e até mesmo o apreço pelo futebol. Sim, na juventude Camus foi goleiro e era clássico seu ensaio filosófico sobre " a solidão do goleiro na marca do gol". Para ele, futebol era a "inteligência em movimento", e por ser a pessoa que sou: quase sempre intranquilo, movimentado, agitado, hiperativo, rebelde, é que compartilho das máximas filosóficas desse pensador argelino. E, afinal de contas, quer relação mais simbiótica em plena véspera de Copa do Mundo, entre futebol e filosofia?
Às vezes sinto-me aquele goleiro solitário de que trata Camus, esperando mais uma das bolas do destino: um novo emprego, uma nova mulher, novos estudos, um outro país a conhecer, novas dores para chorar, novos amores a compartilhar, novos amigos para jogar sinuca, mais solidão, morte?? Ou será que da vida posso esperar apenas que me surja a eterna e intensa capacidade de me revoltar? Por isso, creio que a obra de Camus chamada O Homem Revoltado (L'homme revolté) é fundamental.
Para Albert Camus o homem é revoltado quando descobre o absurdo de sua própria existência. É o que Camus chama de revolta metafísica, ou seja uma revolta da criatura contra seu criador, uma revolta do homem contra a natureza, ou até mesmo, uma revolta contra Deus. O revoltado não é um ateu, pois se um escravo se revolta contra seu senhor, é porque tem que reconhecer a existência do senhor para contrariá-lo. Portanto, o revoltado não é um descrente, o revoltado é um blasfemo.
Homens revoltados tivemos diversos no decorrer da história. Lutero era um deles, assim como toda uma geração de hereges, escandalizadores, subversivos, revolucionários ou contrarrevolucionários, que se não foram fuzilados, pararam na fogueira. Um revoltado não se torna mártir, porque a chaga da polêmica, a "marca de Caim" da controvérsia sempre está estampada na sua testa, e o revoltado adora revolucionar, não apenas os outros, mas sobretudo a si próprio. Talvez a revolta nos tire da posição de goleiros inertes, e evitando uma óbvia relação de causa e efeio (a bola que é chutada deve seguir sua trajetória até os fundos da rede), o revoltado mobiliza o jogo, evita finais fáceis de partida ou "marmeladas", impede que o jogo final da vida se torne um tédio absoluto, faz defesas milagrosas, apanha as bolas impossíveis. Por isso, creio que é salutar se revoltar.
"A bola nunca vem para a gente donde se espera que venha". Parece tão simples, não?! Até piegas, não sei! Mas da simplicidade da frase de Camus pode-se extrair as mais profundas reflexões filosóficas sobre essa arte que é existir.Não pedimos para existir, apenas a existência nos é dada. Por Deus, pra quem é religioso, pelas forças ocultas da natureza, por um poder maior,ou, para um ateu, pelo acaso; mas de qualquer forma não cansamos de questionar nossa existência enquanto humanos, pois é de nossa natureza sermos questionadores. Podemos ser tão conservadores e inertes, como (re) criadores e revolucionários quando queremos, pois é nisso que se embala a vida; pois, senão, teríamos apenas a morte ao final como desfecho inexorável. Chato, não?!
"A revolução consiste em amar um homem que ainda não existe". É justamente por amar o imponderável, o imprevisível, o irrealizável, que acredito encontrar a verdadeira lógica do amor, na perspectiva existencialista de Camus. Por isso, sou forçado a entender que o revoltado não é um ser furioso ou alguém que odeia, quando, ao contrário, muitíssimo ao contrário, entendo ser o revoltado um ser extremamente amoroso. A pulsação da revolta identifica-se com a alegria dos enamorados, de mãos dadas na partida de futebol, atentos ao jogo, numa posição de sempre aguardar a próxima bola, junto à torcida extasiada em campo, alegre não por seu time ter feito tão e simplesmente o gol na defesa adversária, mas sim surpresos pela agilidade do goleiro, em fazer o impossível, em comprometer o imponderável, quando consegue defender sua rede e proteger-se da investida furiosa do atacante, segurando mais uma bola. Não seria assim a vida? Cheia de ataques e defesas, mas sempre com seus goleiros à espera da próxima bola?
"O revoltado não exige a vida, mas as razões da vida". Razões essa que nunca são fáceis de achar, às vezes é até melhor que as coisas não tenham razão. Seria racional que eu ficasse com uma mulher que me ama, que aceita os meus defeitos e me trata com respeito, além de querer se entregar de corpo e alma a mim, mas não é desta forma que se sucedem as coisas, necessariamente. Pois, assim como o personagem do conto "O Estrangeiro", de Camus, quando a namorada pergunta a ele se ele gostaria de se casar com ela, e ela pergunta: "você me ama?" e ele diz: "não", ao que ela se choca e ele simplesmente justifica: "mas eu caso com você, qual é o problema nisso?", eu também sou chamado à sabedoria da revolta ao saber que muitas coisas acontecem por não ter razão. Amar alguém por exemplo transcende essa razão, pois o amor filial ou o amor fraterno são diferentes do amor-Eros, do amor passional, do amor-entrega. O que justifica a vida é ter a capacidade de se revoltar contra os esquemas simples e planejados da vida a dois(por exemplo), mesmo que isso custe o sacrificio de uma esposa, de uma família, de filhos (ahhh, e como eu gostaria de ter isso, mas ao mesmo tempo, não). Soei confuso, neurótico, contraditório, dialético?? Não meus amigos, não se trata de confusão, mas sim de constatação. Não sou um irresponsável solitário ou um aventureiro sempre em busca de novas emoções, como se não me fossem marcantes os lugares e as pessoas. Da minha curta experiência de vida já tive a oportunidade de conhecer mulheres fascinantes (continuo conhecendo, que sorte, por falar nisso) que poderiam muito bem estar comigo até hoje, com outras eu poderia ter me casado ou ter sido mais que um bom amigo, mas preferi em minha revolta estabelecer as razões da vida, que continuam para mim misteriosas, encobertas, dispersas e subliminarmente dispostas em pequenos sinais pelas ruas e avenidas, onde gasto a sola dos meus sapatos. Que bom que sou eu assim! A vida fez-me assim e a filosofia traz em seus singelos textos as respostas que não encontro nos manuais da psicologia ou em livros de autoajuda.
"A filosofia pode servir para tudo, até transformar assassinos em juízes". É, Camus! A coisa anda braba mesmo! De reflexões filosóficas podemos extrair tudo, ou simplesmente nada, no sutil paradoxo de vivenciarmos nossa realidade ao sabor de nossas ilusões por um futuro tão incerto. Podemos matar nosso futuro, dependendo de nossas escolhas, e isso, para mim, foi bem real, no tocante às decisões que tive e ainda terei que tomar na vida; mas ao mesmo tempo podemos ser sábios quanto ao futuro, através de nossas posturas de revolta. É para aprimorar nossa capacidade de julgar que vem o passado, como uma espécie de código, uma legislação anterior que outrora nos governava, e que pode servir de fonte, de referencial ou não para as nossas sentenças.Fazemos isso em relação às pessoas, sobretudo àquelas que podem entrar ou não em nossa vida afetiva, tendo em vista nossos experimentos já realizados, nossas dores ou frustrações já sentidas, que sempre nos levam a colocar um freio no pé, a ficar com uma "pulga atrás da orelha", cada vez que aparece alguém em nossa vida, e isso pode nos leva a arriscar tudo: ou matar nosso futuro, ou com a experiência da morte anterior, nos servir de guia, de orientação para os julgamentos que iremos estabelecer. Já assassinei muitas de minhas relações, agora só me resta querer julgar(sobretudo a mim mesmo), indagando até onde poderei chegar nessa minha cruzada existencial de simplesmente viver.
"A revolta é uma ascese, embora cega". É por isso que creio ser salutar se revoltar. A revolta é criadora, nos tira da letargia, do estado de suspensão em que ficamos ao afundar no desgosto de nossas depressões.
Prestes a ocorrer o Fórum Social Mundial, que terei o prazer de participar, mesmo sobre o coro dos reaçonários que acham que o evento se trata apenas de um "Disneylândia das Esquerdas", creio que o tema da revolta ainda encontra toda sua razão de ser. Porém, a revolta de Camus, como já foi dito, não é apenas uma revolta social, mas sim uma revolta existencial. É a revolta do homem acerca da condição de sua própria existência. Nos revoltamos acerca de como podemos ser tão irresponsáveis conosco mesmo e com nosso planeta, quando as ações humanas convergem para a total destruição, com o aniquilamento da natureza, o descalabro com o meio-ambiente, a poluição, o aquecimento, tudo. Eis que um novo homem deve existir, uma nova pessoa, um novo ser, e esse não é um dos trabalhos mais fáceis. Ser revoltado não é fácil!
Sou um ser revoltado por excelência! Graças a Deus que seja assim!Quando decidi me revoltar acerca de minhas escolhas anteriores de profissão, a encerrar um relacionamento amoroso que não teria mais futuro e a sair de Natal e imigrar para o Sul, adotei uma postura de revolta ( ou de louco, para alguns) largando a estabilidade de um emprego público bem posicionado, numa privilegiada função e status social, saindo de um cenário paradisíaco que nos guias turísticos embeleza nossos cartões-postais. Por que tudo isso? Por que tanta revolta, Fernando Antonio?? Eu poderia me perguntar olhando-me no espelho, talvez escutando I still haven't found what I'm looking for do U2, enquanto percebia o quão grande está ficando minha barba e quantos fios grisalhos dela saem, atestando a passagem do tempo e as evidências de minhas escolhas. Rebelei-me porque a rebelião foi a minha escolha. Optei pela solidão por debaixo das traves, justamente por ter percebido que entre os ataques e as defesas em campo, as respostas para as questões de minha vida que me atormentam só seriam dadas como as bolas a que se referiu Camus, que podem vir de qualquer lugar. Larguei a posição de atacante para a de goleiro, e se não mais permaneço no ataque, é porque entendo que um futuro pré-planejado pode não ser assim tão interessante, visto que fazer gols é meu objetivo, mas nem tanto, hoje, a essência de minha vida. Também não permaneço só na defesa, por entender que não é só me protegendo que conseguirei me salvar das decepções, da dor, da frustração e da tristeza que ainda podem estar reservadas para mim. Prefiro ficar entre as traves, na marca do gol, exercitando a minha revolta, teimando com as bolas que insistem em entrar, tramando contra meu êxito, ao atravessarem a rede; ou, ao contrário, devidamente rebatidas ou agarradas, como as oportunidades que ainda posso ter, em algum lugar e com alguém, que posso simplesmente rebater de minha vida ou agarrar.É minha revolta que diz isso, pois a revolta, ao menos no meu caso, me traz esperança. Não é só eu, mas muita gente pensa assim (ainda bem!).
Portanto, parodiando Marx e Engels, em seu Manifesto Comunista lanço o Manifesto dos Revoltados, em homenagem a Camus: "Revoltados de todo o mundo, uni-vos!!!" Grato pela lição, meu caro Camus!
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