domingo, 25 de janeiro de 2009

SERÁ QUE ELA VOLTOU AMERICANIZADA?

Certo dia acordei pela manhã e ainda com os olhos sonolentos e remelentos liguei a TV como é de costume e dei de cara direto com o Canal GNT. Naquele momento estava passando na tela o documentário "Banana is my business", de 1994, dirigido por Helena Solberg. Confesso que no começo não dei a menor bola para o filme e já ia mudar de canal enquanto ganhava coragem para escovar os dentes. Porém o filme foi lentamente me cativando, cativando, até que quando vi tinha saído da cama e havia passado duas horas compenetrado, assistindo a uma interessante cinebiografia, que me provocou profundas reflexões.
Fui saber por exemplo, que ao contrário da minha tosca ignorância quanto o assunto, Carmen Miranda não foi apenas uma inocente útil a serviço do mainstream cinematográfico yankee, e nem uma simples vedete, garota-propaganda de uma república de bananas chamada Brazil, que devia, aos olhos do americano média da época, não ser muito diferente da África, com suas florestas, macacos e, principalmente, brasileiros.
Na verdade, a Carmen que passei a conhecer de fato, tinha alma e gingado brasileiro, apesar de ter nascido portuguesa. A infância e a adolescência passados no Rio de Janeiro fizeram com que a bela morena portuguesa se abrasileirasse, a ponto de incorporar no sotaque e no jeito de ser, e não apenas na vestimenta, a expressão cultural daquele Rio nostálgico, das rodas de samba, das batucadas e das composições de Noel, que hoje só se recorda em museus, em livrarias ou em lojas de discos para aficcionados, ou em alguma videoteca de faculdade. Foi esse legado cultural que Carmen exportou para os EUA. Carmen Miranda na verdade, fora o café, a cana-de-açúcar e a cachaça, foi nosso principal produto nacional de exportação. O futebol, Pelé e seus demais jogadores viriam depois, primeiro veio Carmen!
No documentário pude perceber que, no princípio, Carmen sabia muito bem como gerenciar sua carreira, chegando a ser a atriz e cantora mais bem paga dos Estados Unidos. E olha que se tratava de uma atriz estrangeira, que falava e cantava em inglês com sotaque, nunca se esquecia de representar em português e era personagem dotada de um completo exotismo, que até para os dias de hoje ainda carrega fortes traços carnavalescos, e tão excêntricos que fariam corar uma modelo de um filme de Almodóvar.
Pois é, pois Carmen era carnavalesca sim. A mulher era a própria expressão do Carnaval. Com seus trejeitos, a artista (brasileira sim, não mais portuguesa) abriu caminho para outras mulheres-ícones também se tornarem estrelas carregando em sua simbologia o Carnaval. Que o diga Leila Diniz, uma década após a morte de Carmen, ou mesmo hoje, a ainda musa Luma de Oliveira. Sim, perdoem-me as feministas, mas Carmen Miranda inaugurou um modelo de mulher latina, não apenas brasileira, que se tornaria épico e marcaria notadamente a identidade sul-americana, o inconsciente coletivo global, a referência de sensualidade caliente da mulher morena, de belas pernas e curvas, autêntica e graciosa ao mesmo tempo, mas que não perde o rebolado, nem se deixa instrumentalizar pela dominação masculina, pois, na verdade, seriam os homens que gostariam de estar aos seus pés. A meu ver, é esse "quê" de sensualidade da mulher brasileira que em tempos globais invade outras searas do globo, conquistando o que se diria inconquistável. Foi dessa forma, por exemplo, que por mais que se considere "anta" a mulher, Luciana Gimenez conquistou Mick Jagger, fazendo exatamente aquilo que qualquer mulher gostaria de fazer com uma lenda mítica do rock do porte de um rolling stone: um filho. Enfim, através de discípulas involuntárias de Carmen Miranda como La Gimenez, o Brasil entrou de forma oblíqua até para a história do rock mundial. De "anta" a mulher revelou que não tem nada, e valendo-se da lendária malandragem carioca, na verdade a esperta foi ela! No final das contas, assim como no final de todos os filmes da Carmen, quem se dava bem no fim da estória era sempre a brazilian bomshell.
Voltando para Carmen e para o filme de Solberg, pude perceber também que Carmen tinha nas mãos o dono do legendário estúdio Twenty Century Fox ( hoje somente Fox), e opinava sobre tudo menos sobre tirar a característica fantasia de baiana e os cachos de banana dos cabelos, sua logomarca por excelência. Foi através dos filmes de Carmen de altas bilheterias, num tempo de apogeu dos musicais, que na Segunda Guerra Mundial a artista acabou se tornando uma involuntária embaixatriz cultural do Brasil, no episódio da participação brasileira no conflito mundial. Numa época em que os EUA necessitavam de cooperação internacional, sobretudo latino-americana, mediante a eclosão das batalhas na Europa e no norte da África, a aliança Roosevelt e Vargas foi essencial no sentido de colocar o Brasil no mapa da geopolítica global e propiciar aos Aliados a passagem geográfica, provisões e material humano para o desmantelamento da máquina nazista; uma vez, inclusive, que a Argentina de Peron ainda flertava com a Alemanha de Hitler, capítulo que os compatriotas de Maradona se esforçam por esquecer. Pois foi fundamentalmente através dos filmes de Carmen que o Brasil pôde ser mostrado não só como um país de macacos, bananas, baianas e pretos sorridentes, ou papagaios cantantes como o Zé Carioca, mas sim como uma nação com identidade própria, com soldados raquíticos, maltrapilhos, porém valentes vivendo sob o regime totalitário e populista varguista, como o único país sul-americano que participou ativamente de batalhas que botaram os militares de Hitler pra correr.
O grande problema de Carmen foi, portanto, seus detratores brasileiros, o fogo amigo direcionado contra ela, do seu próprio solo nacional após o fim da II Guerra. Pois aliado ao desgaste da fórmula da fantasia de baiana, as críticas quanto a sua falta de brasilidade e aparente americanização e um casamento fracacassado, as luzes começaram lentamente a se apagar para aquela sorridente cantora de "tico-tico no fubá". O que dava certo, começou a dar errado!
Não deixei de ficar chocado ao ver uma Carmen decadente voltando para casa após 14 anos ausentes do Brasil no começo da década de 50, numa época em que não era tão comum artistas estrangeiros voltarem para casa ou viverem em seu país de origem após fazerem sucesso em hollywood. Pra se ter uma ideia, a realidade para artistas brasileiros como Gil, Caetano, ou os jovens Alice Braga e Rodrigo Santoro é bem diferente (graças a Deus!). A Carmen que desceu do avião no Galeão não era mais aquela Carmen sorridente e sensual dos musicais, mas sim uma mulher sofrida, atingida pelo tempo e pelas intempéries do destino. Uma mulher que sofria de depressão, que apanhava do marido, que chegava a consumir até 10 comprimidos de calmantes para poder dormir após extenuantes shows, apresentações e gravações que duravam no mínimo quatro horas todos os dias. Uma Carmen envelhecida, enrrugada, chorosa, grogue, trancada em um quarto do Copabacana Palace e com pânico das ruas de um Rio de Janeiro que ela outrora tanto amava, e onde aprendeu a gingar. Tudo isso numa mulher de apenas quarenta e poucos anos, e que fez ver a forma triste como a indústria do show business pode fabricar e ao mesmo tempo destruir seus mitos. Talvez o choque final tenha vindo a mim no final do documentário, quando me deparei com o último registro de uma Carmen Miranda viva, na gravação de seu último filme, em um fatídico 5 de agosto de 1955 ( o dia e mês do meu aniversário, olha a coincidência!), em que se percebia visivelmente os sinais de estafa e a proximidade dos males de um coração que naquela noite deixaria de bater em sua casa em Beverly Hills, ante uma Carmen exausta, trôpega, que chegou a cair no meio de uma dança e se retirou do lugar como todo artista ao fechar das cortinas, dando seu aceno final para a platéia.
Só restaria ao mundo ver as imagens de um Rio de Janeiro comovido diante do retorno final de sua grande musa. No caixão, uma Carmen morta de 46 anos era chorada e lamentada por seus sequiosos fãs, enquanto que seus trajes, sua voz, sua dança e seu sorriso permaneceriam inalterados na história da cultura popular pelo resto dos tempos. Será que o destino de toda estrela é,ao final, deixar de brilhar? O que se destina aos astros após o findar das luzes? Será que eles realmente se apagam? Acredito que, de uma certa forma, esse é o destino natural dos grandes artistas e a predestinação divina a que lhes foi conferida. Estrela que é estrela sempre será trágica, pois é na tragédia da morte que nasce a lenda! E sua alegria e tragédia servem para que eles reservem seu lugar lá onde sempre serão lembrados: na história.

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